segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Atila Iamarino: "vadia de holofotes" pode fazer boa divulgação científica?

Em 18 de março de 2020, Atila Iamarino fez algumas extrapolações assumidamente grosseiras para concluir que, se nada fosse feito, teríamos 1,4 milhões de óbitos por covid até o final de agosto, e 2,6 milhões considerando o colapso do sistema de saúde. Caso fossem adotadas medidas de isolamento de todos os infectados, de seus familiares e de velhos com mais de 70 anos, ainda assim, haveria falta de leitos hospitalares, "dobrando o número de mortes". Disse ainda que, nesse cenário, sem considerar a proporção de idosos na população brasileira, teríamos o equivalente a mais de 1 milhão de óbitos até final de agosto (aqui). Pouco depois, ele declarou à Veja: "eu não quero estar certo" (aqui).

A verdade é que ele errou feio - assim como o Imperial College of London [IC] -, mas fez de tudo para parecer que tinha acertado. Primeiro, caiu em contradição ao tentar explicar que o Brasil estava indo menos mal do que a Europa porque foi rápido em tomar medidas de distanciamento, quando ele próprio havia dito antes que o Brasil já havia perdido a oportunidade de se antecipar ao problema (aqui). No começo de maio, quando os governadores começaram a relaxar medidas de distanciamento que já eram brandas em relação ao que ele e o IC tinham recomendado em março, Iamarino usou um novo estudo do IC para concluir que tinha sido "otimista" (sic!) ao prever que haveria 1 milhão de mortes no final de agosto (aqui). Em 14 de julho, quando já era indiscutível que o número de óbitos ficaria muito abaixo dessas previsões, Iamarino procurou minimizar o erro apresentando uma tabela com diferentes cenários de propagação do vírus conforme o número de reprodução "R". Sua conclusão, com base nessa tabela, foi que "os números que dei em março podem continuar válidos, mas tão errados" (aqui). 

Como é que os números podem ser válidos se estão errados!? Na sequência do fio, ele usa os números da tabela para dizer que, quanto mais rígido for o isolamento, menos pessoas se contagiam e menos pessoas morrem, tal como ele tinha dito antes... O argumento é ridículo porque essa conclusão não saiu dos números que ele apresentou em março comparados aos dados concretos sobre a velocidade do contágio, mas sim dos números na tabela que ele mesmo montou depois, os quais mostram três situações hipotéticas: quantos morreriam se R fosse igual a 2,8, se R fosse 1,5 e se R fosse 1,2. Ora, se a eficácia das políticas de distanciamento pode ser demonstrada aplicando-se números hipotéticos a uma fórmula matemática, isso significa que as projeções que ele apresentou em março eram desnecessárias como evidência para demostrar tal eficácia, de sorte que comparar aqueles números com os da tabela não valida coisa nenhuma! 

Depois de tentar nos convencer de que números assumidamente errados podem ser "válidos", reconheceu, em 02 de agosto, que o número real de óbitos era muitas vezes inferior aos mais de 1 milhão que ele tinha previsto em março e em maio, como segue (aqui):


Se fosse um bom divulgador da ciência, Iamarino explicaria em detalhes por que os modelos do IC que ele propagandeou ficaram tão longe da realidade. Seus seguidores aprenderiam um pouco mais sobre epidemiologia com tais explicações, e ele teria cumprido bem o trabalho de divulgação científica que diz fazer. Em vez disso, porém, ele usou o argumento da subnotificação para afirmar que o número real é muito pior e usou imagens com forte apelo emocional para convencer seus leitores de que ele é uma pessoa cheia de boas intenções: "Titanic afundando"; "eu tô tentando apontar buracos para pararmos de afundar"... 

Previsões e motivações

Apesar dessa retórica convenientemente emotiva, será que ao menos ele acertou ao dizer que o Brasil teria entre 140 mil e 233 mil óbitos já no começo de agosto? Bem, no início da pandemia, cientistas estimaram que o atraso da notificação seria de 10 dias (aqui). Então, como hoje é 02 de novembro, tivemos tempo muito mais do que suficiente para corrigir os dados, certo? Mas, segundo o Our World in Data, os dados atualizados hoje confirmam que, em 02 de agosto, o número de mortes acumuladas era de 93.563 (aqui). 

Será que a maioria das notificações de óbitos está sendo escondida de propósito para desacreditar Iamarino e outros arautos do apocalipse? Mas, se os dados estão ocultos, como é que Iamarino sabe que o número real de óbitos é de 1,5 a 2,5 vezes maior?

Sobre as estimativas de subnotificação, ressalto três coisas: 
  1. Os cientistas do Observatório Covid-19 BR só começaram a se preocupar com a subnotificação quando os números oficiais mostraram que as projeções catastróficas deles estavam sendo invalidadas pelos fatos, razão pela qual, contraditoriamente, deixaram de usar os dados oficiais para calcular a velocidade de duplicação do número de casos (aqui);
  2. Como o Brasil faz muito poucos testes, vários grupos de especialistas usaram comparações internacionais para estimar que o número real de casos deve ser de 8 a 14 vezes maior que o oficial, podendo chegar até a 20 vezes mais. Contudo, mesmo esses especialistas preferem não fazer estimativas sobre o número real de óbitos, já que isso é bem mais complicado (aqui). 
  3. Outro problema com essas avaliações é responder à seguinte pergunta: se o número real de casos é tão grande, como é que os sistemas de saúde brasileiros, na maior parte dos casos, deram conta da demanda? Em abril, o Portal Covid-19 afirmou, com base num modelo matemático, que o número real de casos seria 15 vezes superior e, por isso, previu que o sistema de saúde do estado de São Paulo poderia mergulhar no caos em duas semanas (aqui). Essa previsão fracassou, muito embora o governo paulista tenha começado a relaxar o distanciamento já no começo de maio. 
Diante de tudo isso, de onde vem a certeza de Iamarino ao afirmar que o número de mortes real é de 1,5 a 2,5 vezes maior? Considerando sua insistência em prever mais de 1 milhão de mortes até agosto, não há motivo algum para confiar que ele esteja sendo razoável agora. 


Se Atila Iamarino tivesse admitido logo que as primeiras projeções que ele divulgou estavam erradas, se não tivesse caído em contradição ao avaliar as políticas de distanciamento praticadas no Brasil, se não tivesse usado truques de retórica para afirmar que números errados podem ser "válidos", e se não tivesse feito apelação emocional para disfarçar seus erros, poderíamos supor que se equivocou naturalmente, como acontece com todo mundo. Mas, diante dessas estratégias retóricas, que depõem contra os objetivos e a boa prática da divulgação científica, as hipóteses mais prováveis para explicar seus erros são duas: ou ele se deixou levar pela emoção e exagerou as previsões propositalmente com o objetivo de assustar as pessoas e de convencer as autoridades a aplicar as medidas de isolamento extremamente radicais que ele recomendou; ou ele é tão ávido por holofotes que pintou o quadro mais tenebroso possível por saber que a imprensa sempre tende a dar mais atenção às notícias ruins e aos piores prognósticos. E é bom termos em mente que as duas hipóteses não são mutuamente excludentes...

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