sexta-feira, 24 de abril de 2020

Cientista responsável é o que informa ou o que assusta?

O Observatório Covid-19 BR é um grupo interdisciplinar e independente de cientistas que se dispõem a reunir informações oficiais sobre a pandemia no Brasil e a tratar essas informações com o uso de métodos estatísticos e de modelos matemáticos elaborados por epidemiologistas. Seus objetivos são: fornecer informações úteis para o planejamento das políticas públicas e também "informar a população a partir de um ponto de vista científico" (aqui).

No dia 20 de março de 2020, a imprensa apresentou alguns dos primeiros resultados do trabalho do Observatório. Ficamos assim sabendo que o "ritmo de contágio do coronavírus no Brasil está igual ao registrado na Itália e acelerando". Além disso, os cientistas calcularam que o número de casos da doença, no Brasil, apresentava a tendência de dobrar a cada 54 horas e 43 minutos (aqui)!

Todavia, essa primeira projeção não se confirmou (aqui), e parece já existir um consenso de que o vírus não vem se propagando no Brasil no mesmo ritmo em que isso se deu nos países mais afetados - EUA, Itália, Espanha, França e Reino Unido -, e que o número de mortes diárias pelo covid-19 está também bem mais baixo do que nesses países. O epidemiologista Atila Iamarino, que trabalhou com uma projeção equivocada como aquela em março, já reconheceu que o Brasil está em situação bem melhor, por enquanto (aqui)[*].

Mas isso não significa que o Observatório tenha feito um trabalho incompetente. Os cientistas não dispõem de um conhecimento completo dos muitos fatores que afetam as taxas de infeção, morbidade e de mortalidade desse vírus em cada país, de modo que as projeções podem falhar e ser corrigidas mais tarde à luz de novas informações. Os cálculos divulgados pelo Observatório poucos dias depois indicavam que, em 23 de março, o tempo de duplicação do número de casos era um pouco maior, chegando a 62 horas (aqui). Mas e hoje? Ao acessar o site do Observatório, em 23 de abril, deparei-me com esse pequeno texto: 
No momento não é possível estimar tempos de duplicação da epidemia, pois há um enorme acúmulo de testes moleculares sem resultados, necessários para que os casos sejam confirmados e notificados. Essa demora faz com que os números disponíveis publicamente (número de notificações) cresça de maneira artificialmente lenta.
Assim, a evolução dos números oficiais informa hoje sobre a dinâmica de notificação, não da epidemia. Seria irresponsável seguir divulgando medidas de propagação da epidemia no Brasil com esses números (aqui).
Todos sabem que os números de casos e de mortes são subnotificados, mas não são menos subnotificados hoje do que eram há pouco mais de um mês, quando o Observatório usou os dados oficiais para calcular a velocidade de duplicação de casos com precisão de minutos! Por que antes era responsável calcular o tempo de duplicação e divulgar o resultado, mas hoje não é mais? Por que os primeiros dados oficiais permitiam fazer cálculos que projetavam uma catástrofe, mas agora os mesmos dados oficiais, já melhorados, revelam que a epidemia não se propaga  tão depressa quanto se pensava?[**]

Ao que parece, os cientistas que integram o Observatório acreditam que a responsabilidade deles está em mostrar o cenário mais tenebroso possível para convencer a opinião pública e as autoridades de que as medidas de isolamento precisam ser precoces, rígidas e bastante prolongadas. Se for esse o caso, trata-se de uma postura ética bastante questionável, independentemente de que tais medidas sejam realmente as melhores ou não. Afinal, segundo o filósofo Karl Popper, o compromisso do cientista está na sua atitude pessoal em relação à verdade. Nesse sentido, não é aceitável que cientistas de certas áreas filtrem informações com o fim de criar um efeito psicológico na opinião pública e nas autoridades que as induza a tomar as decisões que esses cientistas julgam ser as melhores. A responsabilidade do cientista reside no compromisso de produzir conhecimentos objetivos sobre os fenômenos e de divulgar esses conhecimentos para que cientistas de outras áreas, além de políticos, juristas, jornalistas e a opinião pública debatam o que fazer com base nesse conhecimento.

Por fim, mas não menos importante: se os cientistas se preocuparem com os efeitos políticos do conhecimento que divulgam ao ponto de filtrarem informações e/ou de não admitirem erros que são inerentes ao trabalho científico, o efeito disso em parte da opinião pública pode ser extremamente danoso para a própria ciência. Afinal, como os cientistas e professores poderão reclamar quando virem que parte da opinião pública prefere dar ouvidos a jornalistas e políticos que confirmam suas convicções sobre determinado assunto ao invés de confiarem na palavra dos especialistas se existirem exemplos concretos de cientistas que filtram informações com o objetivo de alterar as decisões políticas? 

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[*] Iamarino explica a melhor situação brasileira afirmando que nossas autoridades foram precavidas e agiram cedo (sic!), o que contraria o que ele mesmo dizia em 13 de março e não é sustentável à luz dos fatos (aqui).
[**] Os dados atuais sobre número de óbitos por dia são melhores do que os disponíveis quando o Observatório fez suas primeiras projeções. Isso porque há uma defasagem de vários dias entre o registro de óbito e a entrada dessa informação nas estatísticas do Ministério da Saúde, o qual vai corrigindo os dados sobre óbitos diários conforme as informações vão sendo consolidadas (aqui).

domingo, 19 de abril de 2020

Atila Iamarino errou, mas finge que acertou?

Um vídeo do epidemiologista Atila Iamarino que vem sendo bastante compartilhado nas redes sociais faz uma comparação das estatísticas do Brasil, EUA, Itália, Espanha, França e Reino Unido e, com base nesses números e em projeções, conclui que o Brasil exibe bem menos mortes registradas do que os outros porque foi bem rápido em tomar medidas de isolamento (aqui). A primeira conclusão a extrair dessa fala é que Iamarino teria acertado, no mês de março, quando afirmou que a epidemia se espalhava aqui tão depressa quanto na Itália ou EUA e que medidas de supressão deveriam ser tomadas o quanto antes, e prolongadas por vários meses, para evitar uma hecatombe. A segunda conclusão é que os fatores mais importantes para explicar o grau de sucesso de um país no combate à pandemia seriam a precocidade e intensidade das medidas de isolamento adotadas.

Bem, é chato dizer, mas o que esse autor andou escrevendo no Twitter em 13 de março indica que, na visão dele, o Brasil já havia perdido a chance de se antecipar:
Nós tivemos 2 meses pra ver o que aconteceu com a China (e menosprezar por ser outra cultura), 1 mês pra ver o que aconteceu com a Itália e Japão. Já poderíamos ter planejado fechamento de escola, ajuda com empresa pra mandar gente pra casa, treinado as pessoas pra se afastarem.
10:44 PM · 13 de mar de 2020 (aqui
Não aproveitamos a oportunidade, provavelmente pelo bem da economia e para não gerar pânico de mercado. Vamos ver o caminho onde entramos. Não deixem as pessoas culparem o vírus lá na frente. Isso não aconteceu, isso foi decidido.
10:44 PM · 13 de mar de 2020 (aqui)
No dia 18 de março, Iamarino usou uma pesquisa do Imperial College of London para, por meio da extrapolação dos dados sobre os EUA para a realidade brasileira, traçar os seguintes cenários (aqui):
  • Se nada fosse feito, haveria 1,4 milhões de mortos pelo coronavírus no Brasil até agosto de 2020 e 2,6 milhões de mortos devido ao colapso do sistema de saúde, já que a demanda por leitos hospitalares, UTIs e por respiradores ultrapassaria em muitas vezes a capacidade de atendimento.
  • Já o "melhor cenário de mitigação" seria "[...] todo mundo com sintomas é isolado em casa, a família é quarentenada e isolamos idosos com mais de 70 anos";"[...] ainda faltam leitos, o que dobra a mortalidade. Extrapolando essa situação pro Brasil (sem levar em conta a proporção de idosos aqui) seria o equivalente a ainda ter mais de 1 milhão de brasileiros mortos até o fim de agosto".
  • "A única forma de diminuir drasticamente as mortes pela simulação seria a supressão: escolas e universidades fechadas, idosos isolados, casos sintomáticos e familiares isolados e a maior parte dos locais públicos ou com muita gente (como trabalho) fechados".
  • "Nesse cenário, a maior parte das pessoas se salvam. Temos alguns milhares de mortos por algumas semanas, mas os casos caem. Quase todo mundo que precisa de UTI é tratado. Sem milhões de mortes. MAS se suspender a supressão, casos explodem e milhões de mortes de novo".
Ora, se essas previsões de meados de março estivessem corretas, Iamarino jamais poderia falar agora como se o Brasil fosse um exemplo para o mundo, o país que agiu rápido e com muita firmeza para salvar vidas. Afinal, nós não isolamos a população idosa, não isolamos os infectados e nem suas famílias. Para isso, teríamos de fazer testes em massa para identificar os doentes (sintomáticos e assintomáticos), mas o Brasil efetua apenas 269 testes por milhão de habitantes. Portanto, é ponto pacífico que o Brasil não aplicou a política de supressão recomendada por Iamarino. O que fizemos (com diferenças entre estados) foi uma política de distanciamento social sem o reforço do isolamento daqueles grupos.

Mas será que, apesar disso, tais medidas de distanciamento não teriam sido rápidas e rígidas o bastante para nos aproximarmos da supressão? Bem, o presidente Bolsonaro declarou que o covid-19 é "só uma gripinha" e, sendo assim, não declarou quarentena nacional e nem sequer restringiu a entrada de pessoas vindas do exterior pelos aeroportos, mesmo em se tratando de viajantes provenientes de países muito atingidos pela epidemia, como EUA e Itália. Esse governo até bloqueou algumas iniciativas estaduais, pois a Anvisa entrou na justiça para impedir alguns governadores de aplicarem uma política de medir a febre de pessoas chegadas do exterior nos aeroportos. Em função disso, a epidemia já havia chegado até a aldeias indígenas no dia 30 de março (aqui).  

Devido à inação do governo federal, as medidas de distanciamento foram sendo implantadas de forma progressiva e descoordenada, à semelhança do que aconteceu nos EUA, onde governadores foram implantando medidas mais rígidas do que aquelas tomadas por Trump. No dia 16 de março, a imprensa anunciava que as medidas de isolamento se restringiam a "alguns estados", como São Paulo (aqui). Não é à toa que, três dias antes, Iamarino tuitava que não estávamos aproveitando a oportunidade. Em 27 de março, os governadores de Santa Catarina, Mato Grosso e Rondônia anunciavam que iriam permitir a reabertura de algumas atividades de comércio e serviços, enquanto a grande maioria dos governadores declarava que as restrições seriam mantidas (aqui). 

Em face da descoordenação, é preciso contar com a tecnologia para tentar conhecer a efetividade das medidas de restrição por estado e na média nacional. No dia 02 de abril, a imprensa informava que, segundo levantamento feito por uma empresa de software de geolocalização aplicado a smartphones, a média nacional de pessoas em casa era de 58,3% (aqui). Se esse levantamento for razoavelmente preciso, significa que cerca de 40% da população não estava propriamente isolada até começo de abril, de modo que as medidas de distanciamento social aplicadas no Brasil não foram precoces e ficaram muito aquém do que foi recomendado por Atila Iamarino para evitar que o Brasil repetisse o desastre italiano.

Portanto, o caso brasileiro depõe contra a segunda conclusão mencionada acima, isto é, a de que a precocidade e intensidade das medidas de isolamento são os fatores mais importantes para explicar o grau de sucesso alcançado por cada país. Mas seria o Brasil o único ponto fora da curva? 

Não. Poderíamos citar também o caso japonês. Até o dia 24 de março, o governo japonês não havia nem sequer proibido as pessoas de saírem às ruas, embora a doença já tivesse chegado ao país havia cerca de dois meses - antes de ter chegado à Europa, portanto (aqui). Foi só em 07 de abril que o governo desse país decidiu declarar estado de emergência. Mesmo assim, o Japão registrou pouquíssimos óbitos diários nos meses de janeiro até começo de abril, e acumulava apenas 85 mortes naquela data. De outro lado, Itália, Espanha e França implantaram medidas duras de quarentena entre os dias 09 e 17 de março, mas, ainda assim, amargaram centenas de óbitos por dia dali até 12 de abril, acumulando milhares de mortes cada um (aqui).

Qual é a explicação que Atila Iamarino dá ao caso japonês no vídeo citado acima? Nenhuma, pois os gráficos que ele mostrou não incluíam o Japão. A impressão que fica é que o autor selecionou apenas os casos que supostamente confirmam sua teoria e ignorou os casos que não se encaixam. Um artifício válido nos campos do direito e da política, em que se trabalha com a retórica, mas não no campo científico, no qual é preciso levar em conta todos os casos.

Cientistas e professores odeiam quando pessoas leigas num assunto preferem dar ouvidos a jornalistas e políticos que confirmam as convicções delas ao invés de confiarem nos especialistas. Mas, quando até um leigo em epidemiologia, como é o meu caso, consegue perceber pela análise dos fatos que um cientista de currículo reconhecido pode estar se contradizendo e filtrando informações, fica difícil deixar de pensar que aquela atitude de desconfiança de boa parte do público é estimulada pela forma como alguns cientistas participam dos debates públicos.

P.S. - Obviamente, não nego que medidas de isolamento salvam vidas. A questão é que precisamos conhecer bem as causas das diferenças de desempenho entre países para calibrar essas medidas (ver abaixo). Afinal, é inconteste que distanciamento social diminui as taxas de infecção e de mortalidade, mas é igualmente inconteste que distanciamento gera recessão e que recessão também mata.

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segunda-feira, 13 de abril de 2020

Pandemia nos pôs no mundo das escolhas trágicas

Um clichê muito comum nos filmes de ação e de super-heróis é o que eu chamo de “falsa escolha trágica”. Aquele momento em que o vilão força o herói a escolher entre salvar a vida da mulher que ele ama ou salvar o mundo, a cidade, ou dezenas de pessoas que ele não conhece. Mas, embora o herói sempre opte por salvar primeiro quem ele ama, sempre acaba tendo tempo de salvar também as outras pessoas. Então a escolha trágica é falsa, pois o herói não é realmente obrigado a escolher quem vai salvar: ele salva todo mundo, pronto.


Pena que o mundo real não seja assim. Na vida real, há ocasiões em que se é obrigado a escolher quem morre e quem vive, ou a escolher entre mais mortes ou menos mortes. E o pior: sem ter certeza sobre qual decisão vai matar mais. É bem nessa situação que a pandemia colocou o mundo. 


Isolamento horizontal prolongado nem sempre é necessário e nem todos podem bancar 


Todo mundo, inclusive eu, já disse que EUA e Itália estão em situação pior do que os outros países porque demoraram a agir. Mas, à medida em que o tempo foi passando, ficou claro que não é bem assim [*].


A França decretou quarentena em 17.03 e já tem 14,3 mil mortes registradas. A Espanha decretou quarentena em 15 de março e já acumulou 16,9 mil mortes. A Itália decretou quarentena nacional em 09 de março, mas já está com 19,8 mil mortes confirmadas. 


A doença chegou ao Japão antes de chegar a esses países todos e, mesmo assim, os japoneses só decretaram estado de emergência em 07 de abril. Até aquela data, esse país registrava só 85 mortes acumuladas. Em 12 de abril, eram 108 mortes.


Os EUA até que se parecem com o Brasil. Lá, assim como aqui, o isolamento horizontal foi se estabelecendo de forma progressiva e diferenciada por estado, já que os governadores implantaram medidas mais restritivas do que o governo Federal. Mas a diferença de resultado é abissal: os EUA já contam 21,3 mil mortes, enquanto o Brasil registra apenas 1,1 mil mortes. 


Esses fatos mostram que a precocidade e intensidade das medidas de isolamento não são os fatores mais importantes para explicar as diferenças de desempenho entre os países. E nem dá para dizer que o isolamento horizontal é a única alternativa que funciona: quando o Japão decretou estado de emergência alegando perigo de descontrole, estava em situação muitíssimo melhor do que a de quase todos os países do mundo. Logo, o isolamento horizontal não era uma necessidade absoluta para esse país. Lá, o endurecimento das medidas foi uma resposta do governo ao estado psicológico da população, que, na sua maior parte, apoia medidas de isolamento pelo desejo de salvar o maior número possível de vidas. É compreensível as pessoas quererem salvar o máximo de vidas em números absolutos, sem se importarem se estão em situação relativa melhor ou pior. Ainda assim, o governo japonês só tomou essa decisão porque irá levantar 1 trilhão de dólares para custear o isolamento… Pouquíssimos países podem contar com tantos recursos assim.


Isso significa que nem todos os países precisam de isolamento horizontal e que a maioria dos que talvez precisem ou desejam implementar essa medida não têm dinheiro para isso. Mas, se as medidas de isolamento não são o fator mais importante para explicar as diferenças de desempenho entre países, qual seria? 


Pelo que eu li até o momento, a melhor hipótese é a das políticas nacionais de aplicação de vacina BCG. Sabe-se há tempos que a vacina BCG não imuniza só contra a tuberculose, mas também contra vários tipos de doenças respiratórias. Os pesquisadores do Departamento de Biomedicina do Instituto de Tecnologia de Nova Iorque resolveram então testar se havia correlação entre as políticas de aplicação universal de BCG e as taxas de infecção, morbidade e de mortalidade por covid-19. 


O que descobriram? Países sem políticas universais de aplicação de vacina BCG, ou que interromperam tais políticas, estão sofrendo muito mais com esse vírus: EUA, Itália, Espanha, França e Holanda, entre outros. O caso do Irã é ilustrativo porque esse país só começou com a vacinação universal em 1984 e, portanto, não imunizou sua população idosa. De outro lado, países com políticas de vacinação universal e obrigatória iniciadas há mais tempo e mantidas continuamente são os que têm as menores taxas de infecção e de mortalidade. Entre eles estão o Japão, que deu início a tal política em 1947, e o Brasil, que começou em 1920.


Mas é certo que identificar uma correlação entre dois fatores não significa que não haja outros fatores atuando. O Japão pode ter sido ajudado também por sua “cultura de resguardo”, como já comentou um infectologista brasileiro. O Brasil não conta com essa cultura, mas pode estar sendo beneficiado em alguma medida pelo fato de que, como já é conhecido desde os anos 1980, os vírus da classe corona não se disseminam tão depressa em regiões de clima quente.


Escolhas trágicas


Se as projeções do Imperial College of London sobre o Brasil tivessem acertado, nós estaríamos agora no rumo de uma hecatombe: cerca de 1 milhão de mortes. Tivemos sorte, pois, mesmo com medidas bastante frouxas (em comparação com aquelas recomendadas por essa instituição e pelo epidemiologista Atila Iamarino), estamos nos saindo bem na comparação com EUA, Itália, Espanha, França, Equador, etc. 


Mas o problema é que as medidas de isolamento já tomadas, mesmo sendo brandas, têm efeitos econômicos potencialmente desastrosos. Recessão também mata; e mata muito. Em apenas um ano, o número de pobres e de miseráveis poderá crescer facilmente em milhões de pessoas (ver abaixo). E nós não dispomos de recursos para bancar medidas rígidas e prolongadas de isolamento, ao contrário de outros países citados aqui. Só com as medidas tomadas até o momento, o governo de Minas Gerais já está ficando sem dinheiro até para pagar o funcionalismo.

Então o melhor seria começar a abrandar as medidas de isolamento a partir de agora? Talvez não, pois não podemos olhar o número de infectados e de mortos sem levar em conta a capacidade do nosso sistema de saúde, especialmente no que diz respeito ao atendimento em UTI. No Brasil, a taxa de leitos hospitalares é inferior ao mínimo recomendado pela OMS para épocas normais. Só isso já é uma boa indicação de que nosso sistema de saúde pode entrar em colapso mesmo com um ritmo de infecções e de mortes diárias muito inferior ao dos países mais afetados.

É possível que o Brasil esteja diante de uma escolha trágica: se as medidas de isolamento forem prolongadas ou intensificadas, o desastre econômico será de tal ordem que, muito provavelmente, vai matar mais do que a pandemia, ainda que num prazo mais longo. Por outro lado, se as medidas forem abrandadas, mais gente vai morrer pelo vírus. E não adianta chamar pelo Super-Homem.

[*]: Os números citados for obtidos em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51987873. Acesso em: 12 abr. 2020.


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sexta-feira, 10 de abril de 2020

"Instinto de negatividade" na pandemia

O médico Hans Rosling chamava de "instinto de negatividade" à tendência que as pessoas têm de prestarem muito mais atenção às informações negativas do que às positivas. Essa seria uma das razões que explicam por que a maioria das pessoas, mesmo as mais instruídas, acha que o mundo está piorando, quando todas as evidências empíricas provam que o mundo melhorou enormemente nas últimas décadas, em quase todos os países e em todos os setores (Rosling, 2019). 

Ora, a reação de muitos brasileiros à atual pandemia é um exemplo interessante de como esse instinto opera. Quando surgiram os primeiros casos confirmados da doença no Brasil, os pesquisadores do Observatório Covid-19 BR afirmaram que esta vinha se disseminando aqui à mesma velocidade com que havia se espalhado na Itália e na Espanha poucas semanas antes. Isso deixou a opinião pública alarmada, e com toda razão. Contudo, os cálculos efetuados pelos cientistas estavam errados!

Em 20 de março de 2020, com efeito, o Observatório estimou que, no dia 24 de março, haveria um mínimo de 2.714 e um máximo de 3.400 casos no Brasil. E previram que a tendência a partir dali era de o número de casos dobrar a cada 54 horas e 43 minutos. Todavia, os números oficiais mostram que o número de casos no dia 24 era de apenas 2.201. Bem menos do que o mínimo estimado! Além disso, se o número de casos dobrasse naquela velocidade, deveriam haver 86.848 casos até o dia 11 de abril. Só que o número de casos confirmados nessa data ficou em apenas 10.278...

Todavia, quando eu comento com as pessoas nas redes sociais que essa e outras projeções falharam, quase todas se mostram céticas e dizem: "Mas os números oficiais são subestimados! Para saber com certeza teríamos de fazer muitos testes, mas não fazemos! O número real com certeza é muito maior"! 

Essa resposta demonstra que as pessoas se deixam levar pelo "instinto de negatividade" a tal ponto que não percebem que o argumento da falta de testes tanto pode servir para dizer que o número real é muito maior como também para explicar por que as projeções iniciais do Observatório exageraram.

A razão é simples: como o Brasil faz poucos testes (e a grande maioria dos países também testa pouca gente) isso significa que é bastante razoável supor que a doença não chegou ao Brasil em 26 de fevereiro, data do primeiro caso confirmado, mas bem antes disso. Afinal, já que o número de pessoas testadas é pequeno, nada mais lógico que a doença tenha chegado ao Brasil semanas antes do que se pensa e se disseminado por um bom tempo até ser detectada pela primeira vez, certo? Os pesquisadores do Observatório teriam errado por que supuseram que o primeiro caso confirmado era realmente o primeiro caso de todos? Olharam os números de infecções relativos aos dias entre o final de fevereiro e começo de março e acharam que estavam vendo o início da pandemia no Brasil, quando o que viam era a doença já com algumas semanas de infecção?

Na verdade, os cálculos e projeções que esses cientistas elaboraram tomavam como ponto de partida o dia 14 de março, quando já havia 121 casos registrados, porque esse era o número mínimo necessário para que os cálculos pudessem ser feitos. Mas então por que as projeções falharam?

Seja qual for a resposta, a reação de muitas pessoas à notícia de que o Covid-19 não se espalhou no Brasil tão depressa quanto na Itália demonstra que elas se deixam levar pelo "instinto de negatividade" ao ponto de argumentarem de forma contraditória, pois não percebem que a razão que alegam para acreditar no pior cenário possível é exatamente a mesma que nos ajuda a explicar por que esse cenário não se realizou até o momento. 

P.S. - Não pretendo substituir o instinto de negatividade por um otimismo exagerado. O número diário de mortes continua crescendo devagar, sem tendência exponencial, mas mudou um tanto de patamar no início de abril. Apenas ressalto que as previsões mais catastróficas falharam, e isso tem de ser levado em conta no planejamento de medidas de isolamento, cujos efeitos sociais são terríveis.

Atualização do post (15.07.20) - "[...] cientistas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) identificaram a presença do vírus em amostras de esgoto congeladas, que foram coletadas a partir de 27 de novembro [de 2019]". A mesma matéria informa que, na Espanha, o vírus já estava presente nos esgotos um ano antes do primeiro caso registrado da doença  (aqui). Portanto, as estimativas do Observatório em março falharam ao concluir que a doença estava se espalhando aqui com a mesma velocidade com que havia se espalhado em países como Itália e Espanha, e a falha ocorreu porque esse grupo não levou em conta que o vírus, muito provavelmente, havia chegado ao Brasil antes do que se imaginava, sendo que o pequeno número de testes realizados era o principal motivo para levar isso em consideração.

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ROSLING, H. Factfulness: o hábito libertador de só ter opiniões baseadas em fatos. 2. ed. Rio de Janeiro: Record,  2019.

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sexta-feira, 3 de abril de 2020

Quarentena: quantos pobres em nível subsaariano essa medida vai produzir?

Para estimar o efeito das medidas de isolamento contra o coronavírus no aumento da pobreza,  elaborei uma pequena tabela com dados de crescimento econômico e de população pobre para os anos 2014-2016 (ver aqui). Usei uma linha de pobreza absoluta de US$ 1,90 por Paridade do Poder de Compra (PPC) porque esse é o parâmetro recomendado para medir a pobreza monetária nos países mais pobres do mundo. Ou seja, é um indicador que capta situações de pobreza aguda mesmo para os padrões de países com renda muito baixa.

Bem, os dados mostram que o desempenho da economia foi péssimo nesse período, pois houve um crescimento de apenas 0,50% do PIB em 2014, seguido de forte retração nos dois anos seguintes, com variação negativa de 3,50% e de 3,28%, respectivamente. O resultado foi que o número de pobres passou de 9,18 milhões em 2014 para 10,94 milhões no ano seguinte e para 12,05 milhões em 2016. E, de acordo com a Síntese de indicadores sociais (IBGE, 2019), continuou havendo aumento da pobreza em 2017 e 2018, embora o país já tivesse saído da recessão.

Ora, a Fundação Getúlio Vargas - FGV, estima que, por conta da crise econômica gerada pela pandemia, o PIB de 2020 poderá sofrer redução de 4,4% - a maior queda desde 1962 (aqui). Uma projeção um pouco mais recente, do Itaú Asset, prevê redução de 3,3%, e com impacto maior no setor de serviços, justamente aquele que mais emprega. Essa gestora afirma ainda que, mesmo havendo recuperação nos dois últimos trimestres deste ano, o ritmo deverá ser lento "seja pela volta ao dia a dia atrasada pelo medo de contágio, seja por efeitos colaterais do baixo crescimento prejudicando empresas e população" (aqui). Portanto, os dados de crescimento e pobreza para o triênio 2014-2016 permitem estimar, por comparação, que as medidas de isolamento praticadas no Brasil (embora descoordenadas em níveis federal, estadual e municipal), poderão produzir facilmente bem mais de um milhão de pessoas com nível subsaariano de pobreza monetária em apenas um ano!

E isso para não comentar que, de acordo com uma pesquisa divulgada em outubro do ano passado, e realizada por uma equipe de médicos e economistas, a crise econômica vivida pelo Brasil de 2012 a 2017 está relacionada a 31 mil mortes, sendo que o resultado dessa pesquisa foi publicado numa revista internacional da área de ciências da saúde (aqui). Não há soluções fáceis, pois não fazer nada pode matar muita gente, mas a recessão econômica gerada pelas medidas de isolamento horizontal também matam muitos milhares.

E vale dizer que essas péssimas projeções sobre o PIB de 2020 se baseiam na expectativa de que as políticas de isolamento atual durem por cerca de apenas um mês. Mas o que aconteceria se o Brasil fizesse uma política de "isolamento social extremo" de toda a população por tempo indefinido, e com perspectiva de durar, no mínimo, de 12 a 18 meses, conforme a recomendação do Imperial College of London? E se o Brasil praticasse essa mesma política de supressão (isolamento horizontal) de março até agosto, conforme propôs o epidemiologista Atila Iamarino, em um vídeo bastante compartilhado nas redes sociais?

Ora, se essas medidas extremamente radicais propostas pelos epidemiologistas vierem a ser praticadas no Brasil, poderá haver uma explosão da pobreza como nunca se viu aqui. A epidemiologia é uma ciência, mas a economia também é. Epidemiologistas podem projetar o que seria ideal fazer, mas é a economia que diz se existem recursos suficientes para chegar nesse ideal e quais são os efeitos sociais das medidas de isolamento, que podem matar até mais do que o Covid-19.

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IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2019. Rio de Janeiro: IBGE, 2019 (Coleção Estudos e pesquisas. Informação demográfica e socioeconômica, n. 40).