quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

A arte das comparações estatísticas desonestas numa matéria da BBC

As comparações feitas na matéria Brasil tem mais mortes por covid em 1 semana do que 63 países juntos na pandemia inteira são desonestas. Os 63 países mencionados no título têm populações que, somadas, são muito maiores do que a nossa, mas o artigo não informa que a grande maioria destes é formada por países muito pobres, ou seja, países nos quais a confiabilidade dos dados é tão baixa que cientistas preferem desconsiderar esses dados na elaboração de estudos sobre a pandemia. É o caso de uma pesquisa sobre a possível correlação entre as políticas de aplicação universal de vacina BCG e a pandemia atual. Os cientistas que fizeram o estudo desconsideraram as informações de todos os países de baixa renda devido à falta de confiabilidade nas informações, e os dados brasileiros foram levados em conta porque o Brasil é um país de renda média.

O que se vê na matéria é uma tentativa de alarmar a opinião pública para induzi-la a apoiar medidas mais duras de restrição de contato. E, no afã de cumprir esse objetivo, manda a coerência às favas, como fica claro no momento em que a matéria compara os dados do Brasil com os do Japão e enfatiza que este último tem muito menos mortes... 

Ora, o Japão é um país que nunca aplicou lockdown, nem quarentena. Seu diferencial está justamente em aplicar medidas bastante brandas de distanciamento. Não fechou as fronteiras para viajantes vindos da China mesmo quando os hospitais de Wuhan já estavam sobrecarregados e outros países se fechavam. A pandemia chegou ao Japão em fevereiro, mas só em 07 de abril se decretou estado de emergência. Mesmo com a decretação, os estabelecimentos comerciais foram apenas "convidados" a fechar, e não havia nenhuma punição prevista para os estabelecimentos que abrissem. Em 25 de maio, o balanço das medidas tomadas no Japão e de seus resultados era o seguinte:
Não foram impostas restrições à mobilidade de residentes, e empresas, como restaurantes e salões de beleza, permaneceram abertas. Não foram implantados aplicativos de alta tecnologia que rastreavam os movimentos das pessoas. O país não possui um centro de controle de doenças. E, mesmo quando os países foram exortados a "testar, testar, testar", o Japão testou apenas 0,2% da população, uma das taxas mais baixas entre países desenvolvidos. No entanto, a curva foi achatada, com mortes bem abaixo de mil, de longe o menor número entre países desenvolvidos do G-7. Em Tóquio, com alta densidade populacional, os casos caíram para um dígito na maioria dos dias (aqui).
Agora, na segunda onda, enquanto a Europa já aplicava lockdown, o Japão nem sequer mandava fechar os cinemas: milhões lotaram as salas para assistir um desenho animado. Mesmo assim, a BBC usa a comparação entre Brasil e Japão para dizer que precisamos de medidas mais duras de isolamento! De outro lado, a matéria informa que o Brasil está em 19º lugar quando se trata de mortes por milhão de habitantes, mas não menciona que muitos países em situação pior do que a nossa aplicaram medidas rígidas de quarentena e de lockdown já desde a primeira onda. São os casos da Itália, Espanha, Reino Unido, França e Argentina. 

E, falando na Argentina, é importante ressaltar que a matéria só compara o Brasil com extremos de pobreza e riqueza, nunca com os países mais próximos de nós em termos geográficos e socioeconômicos, ou seja, com os países mais desenvolvidos da América Latina. Desonestidade intelectual absoluta.

Ora, os dados citados pela BBC sobre o aumento recente nos números de casos e de mortes no Brasil são preocupantes, e estão sendo levados em conta pelos governadores. São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul são três exemplos de estados que intensificaram as medidas de distanciamento social para evitar a saturação dos serviços de saúde. Não precisamos de comparações desonestas para justificar esse tipo de medida. E convenhamos: até agora, o Brasil não precisou de quarentena e nem de lockdown para evitar o colapso dos seus sistemas de saúde, ao contrário do que recomendaram vários especialistas que, embora tendo divulgado projeções erradas, ganharam muito destaque em certa imprensa ávida por fazer alarmismo.

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segunda-feira, 30 de novembro de 2020

"Bacurau" é só propaganda ideológica de baixa qualidade

 Assisti Bacurau faz algum tempo e não vi nenhuma dessas qualidades que o crítico Luiz Carlos Merten atribui ao filme (aqui). A obra não faz reflexão política e social coisa nenhuma. É só um monte de clichês esquerdistas a serviço de um maniqueísmo político primitivo, que opõe nacional e estrangeiro, dominantes e "excluídos". 

E a falta de inteligência e o primitivismo político do filme refletem bem o modo de (não) pensar de Kléber Mendonça, que dirigiu esse filme e também Aquarius. Quando Aquarius foi exibido em Cannes,  o elenco e a equipe técnica do filme protestaram contra o suposto "golpe" que teria derrubado Dilma! Ou seja, contaram uma mentira descarada para fazer propaganda partidária e, de quebra, dar visibilidade ao filme. No caso de Bacurau, vale dizer que esse filme tem ainda o defeito de ser didático na exposição de seus clichês políticos maniqueístas e que não se salva nem como filme de ação, já que as cenas de combate são muito pobres em comparação com o que o cinema e a TV americanos já oferecem disso todos os anos, às toneladas. 

Enfim, é um lixo de filme, e a crítica nacional e internacional que o elogia só está interessada em usá-lo como peça de propaganda política contra Bolsonaro e Trump. Isso fica bem evidente no texto de Merten, o qual comenta a associação explícita que a crítica faz entre Bacurau e a oposição a esses políticos. Assim, não surpreende que essa crítica (incluindo Merten) aponte no filme qualidades que este definitivamente não tem. 

As discussões sobre o filme refletem estes tempos de forte polarização política e ideológica, cuja consequência é o empobrecimento dos debates e das avaliações sobre obras artísticas. Chegamos assim ao ponto em que até uma parábola política maniqueísta e cheia de clichês ideológicos explicados na forma de diálogos didáticos pode ser qualificada por certa crítica como obra "audaciosa"! 

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sábado, 21 de novembro de 2020

Negros que o movimento negro não quer celebrar (e que o Facebook apaga da história)

Em uma sociedade não racial, não deveria haver "dia da consciência negra" ou branca ou de qualquer outra raça. Mas, já que instituíram um Dia da Consciência Negra no Brasil, ao menos deveriam ter escolhido uma data que homenageasse um negro importante da história brasileira que realmente lutou pela abolição e contra o racismo. Mas o movimento negro prefere mitificar Zumbi, rei de um Quilombo dentro do qual havia trabalho escravo, conforme já foi apontado por diversos historiadores. E, não bastasse isso, ainda apagam a história dos negros que realmente labutaram pela abolição e contra o racismo só porque a história desses negros revela a grande importância da Lei Áurea e da Princesa Isabel.

Como exemplos, transcrevo aqui alguns pequenos textos que contam a história desses negros esquecidos pela militância política e pelos professores de história e de geografia. Começo por André Rebouças, abolicionista cuja história vem sendo censurada pelo Facebook porque não está de acordo com os "Padrões da Comunidade".

Boa leitura!

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Engenheiro André Rebouças

Em 1873, o engenheiro André Rebouças, durante viagem aos Estados Unidos, se depara com o racismo que dominava a sociedade norte americana da época. Ao tentar se hospedar em vários hotéis de Nova Iorque, é impedido de entrar por ser negro, situação que nunca tinha passado no Brasil.

Teve de pedir ajuda ao cônsul Brasileiro em Nova Iorque, Luís Henrique Ferreira de Aguiar, para se hospedar no Washington Hotel. Logo após sofrer essa série de humilhações nos hotéis da cidade, Rebouças ainda passa por uma humilhação maior: é barrado de entrar no Grand Opera House de Manhattan, simplesmente por ser negro.

Apesar de ter sofrido na pele a experiência da segregação racial em sua visita aos Estados Unidos, Rebouças ficou encantado com o progresso técnico e o desenvolvimento econômico. Segundo o historiador Antônio Higino, os planos de modernização do Brasil sonhados por Rebouças se sustentavam numa associação entre uso de tecnologia, liberalismo econômico, associacionismo e trabalho livre dos EUA.

Ele demonstrou muita familiaridade com a história, a literatura e o próprio estilo de vida do país, sobretudo com os aspectos da política e da legislação norte-americanas.

Embora expressasse o seu total desdém pelo fato dos Estados Unidos ser uma República (André Rebouças era monarquista e amigo íntimo da família imperial).

Fonte: O Negro André: a questão racial na vida e no pensamento do abolicionista André Rebouças, de Anita Maria Pequeno Soares. Equipe Pedro II do Brasil. 


André Rebouças, Protetor dos Filhos da Princesa Isabel

Na manhã do dia 15 o Conde d'Eu e a Princesa Isabel faziam, pelas imediações do palácio, o habitual passeio a cavalo na companhia dos filhos, percorrendo laranjeiras até a praia do flamengo- "sem sombra de preocupação", dirá o Conde depois à Condessa de Barrai. O aspecto das ruas e dos transeuntes, a igual de toda a cidade, era o mesmo de sempre. Foi só na volta à casa, quando Gastão se pôs a ler os primeiros jornais do dia, que ele deparou com uma notícia incerta no Diário do Comércio, sobre um "movimento de indisciplina" que teria havido na Escola Militar, e que levará os Ministros a se reunirem, até alta noite, na Secretaria da Guerra. Não deu, porém, maior importância à notícia.

Estavam, assim, todos tranquilos naquela casa quando apareceu, por volta das dez horas, o Alferes Ismael Falcão, com a notícia de que as tropas estavam reunidas em frente do Quartel-General, com o Marechal Deodoro e Quintino Bocaiúva. "Neste caso, disse o Conde d'Eu - acabou se a Monarquia no Brasil.

Mal se tinham vindo a si os donos da casa diante de tais notícias, quando começaram a aparecer, sucessivamente, outros amigos, entre eles o Engenheiro André Rebouças "que me abraça, segundo o seu costume nas ocasiões solenes" - dirá o Conde d'Eu, com o plano que ele combinara com o Visconde de Taunay, de o Imperador ficar em Petrópolis, cercar-se ali de personagens importantes e organizar um Governo para enfrentar a insurreição militar.

O plano também foi apresentado à própria Princesa Isabel, que lamentaria mais tarde, depois de tudo perdido, não ter sido adotado. Além de apresentar um plano concreto de resistência a Deodoro da Fonseca, Rebouças propôs a Princesa Isabel e a Ramiz Galvão, professor dos Príncipes Pedro, Antonio e Luis, deixarem a proteção dos herdeiros da Casa de Orleans e Bragança sob seus cuidados. E sugeriu levá-los ao bordo couraçado Riachuelo e depois a Cidade de Petrópolis onde ficariam a salvo do caos do momento.

A intenção de Rebouças, que o Conde d'Eu demorou a compreender, era acompanhar e zelar pelos pequenos Príncipes Imperiais, aos quais se mostrara sempre muito afeiçoado, substituindo, de um certo modo, o Barão de Ramiz Galvão, que por motivos particulares não os podia acompanhar à Europa. Rebouças desceu de Petrópolis com os príncipes na madrugada de 17 de novembro, já decidido a compartilhar da sorte dos mesmos na Europa. Decidido "a partir para a Europa, - diz rebouças em seu Diário, - "com a Família Imperial, em lugar do Dr, Ramiz Galvão, Impossibilitado de partir pela numerosa família". 

O já deposto Imperador e a princesa Isabel tentaram convencer Rebouças a ficar no Brasil, onde seus conhecimentos seriam de bom proveito a nação, porém o engenheiro e empresário baiano já havia decidido que não iria participar de um governo que considerava ilegítimo, que jamais aceitaria seus planos econômicos de reforma agrária. Se já não podia restaurar o Império, Reboucas pelo menos poderia ajudar o amigo deposto de seu cargo de chefe de estado. Rebouças serviu de professor aos netos do Imperador até a morte do Monarca Brasileiro em 1891".

Fonte: História da queda do Império, Por Heitor Lyra. O livro consta do acervo da Biblioteca do IBGE, mas o Facebook censurou o post acima dizendo que viola os "Padrões da Comunidade"!


Francisco de Paula Brito (1809-1861)

Jornalista, escritor, poeta, dramaturgo e tradutor. Trabalhou em diversas tipografias e fundou a "Sociedade Petalógica", que teve como membro ilustre o então jovem escritor Machado de Assis. Foi ativista político e o primeiro a inserir no debate político a questão racial. Em sua tipografia foram impressas obras como “O Mulato“ e o jornal “O Homem de Cor”, colocando-o como precursor da imprensa negra. Em 1850, criou a “Imperial Typographia Dous de Dezembro”, data de seu aniversário e do Imperador Dom Pedro II, que se tornou seu acionista. Paula Brito foi, assim, o primeiro editor genuinamente não-especializado do país, pois incluía grande variedade de obras e assuntos, ao contrário de seus antecessores, que se dedicavam mais aos assuntos técnicos.



Monteiro Lopes (1867-1910)

Primeiro deputado federal negro do Brasil, nasceu na cidade de Recife, estado de Pernambuco, em 25 de dezembro de 1867. Filho do operário Jerônimo da Motta Monteiro Lopes e de Maria Egiphicíaca de Paula Lopes - ambos escravos libertos. Fez sua formação básica no Ginásio Pernambucano; em seguida, matriculou-se na Faculdade de Direito do Recife com a ajuda de Pedro II com sua bolsa para negros libertos a famosa “bolsa do Imperador”, período no qual revelou sua "têmpera de lutador" e se tornou um "acérrimo abolicionista". Em 1889, Monteiro Lopes mudou-se para o norte do país, onde exerceu cargos públicos e enfrentou embates políticos. Foi "nomeado promotor público de Manaus, sendo mais tarde elevado às funções de juiz de direito na mesma cidade". Por volta de 1894, transferiu-se para a capital federal, a fim de se dedicar à advocacia. Após conseguir se eleger vereador da cidade do Rio de Janeiro, em 1903, apenas 15 anos depois da lei áurea, Monteiro Lopes lançou sua candidatura a deputado federal, o que detonou uma fortíssima reação de cunho racista em contra sua candidatura. Depois de um duríssimo embate, a talvez maior mobilização de negros vista em escala nacional após a luta abolicionista levada a cabo no século XIX, alcançou-se pleno êxito, conseguindo Monteiro Lopes ser diplomado e empossado como o primeiro deputado federal negro da história brasileira, ele recebeu uma carta de parabéns da Princesa Isabel do exílio na França, porém, no ano seguinte em 1910, a diabetes deu cabo de sua vida, aos 43 anos.



Dr. José Ferreira de Menezes

Neto de escravos alforriados de São Paulo, Ferreira de Menezes foi um abolicionista, escritor, advogado e fundador da influente folha "Gazeta da Tarde", em 1880. Menezes fazia parte da crescente elite intelectual negra da época, era amigo de Luiz Gama, Machado de Assis, José do Patrocínio e André Rebouças.

Seu jornal foi Pioneiro na causa abolicionista, suas páginas estavam fartas de denúncias da reescravização ilegal de negros libertos, crime previsto no Código Criminal da época. Menezes morreu apenas um ano após a criação do jornal, seu amigo José do Patrocínio liderou a continuidade do jornal até 1887, quando fundou a “Cidade do Rio”.



Hemetério José dos Santos (1858-1939) 

Foi professor, gramático, filosofo e escritor, nascido na cidade de Codó, província do Maranhão, no ano de 1858, Hemetério José dos Santos mudou-se para a província do Rio de Janeiro em 1875, aos 17 anos. Hemetério era filho do Major Frederico dos Santos Marques Baptisei, proprietário da fazenda Sam Raymundo, e de sua escrava Maria. Seu pai pagou seus estudos no Collégio da Imaculada Conceição, em São Luis.

Aos 20 anos de idade já era professor do Colégio Pedro II, na capital do Império; em 1889 era nomeado professor adjunto de língua portuguesa do Colégio Militar do Rio de Janeiro pelo Imperador Dom Pedro II, onde, mais tarde, tornou-se professor vitalício. Cursou a Escola de Artilharia e Engenharia, conquistou a patente de Major, obtendo, depois, o galardão de Tenente-Coronel honorário em 1920. 

Sua atuação enquanto professor em diferentes espaços escolares, tais como o Colégio Militar do Rio de Janeiro e a Escola Normal Livre, ia além do fazer em sala de aula, pois o mesmo se utilizava desses e de outros espaços a fim de ministrar palestras e conferências a respeito do ensino. Na opinião de Sílvio Romero, ombreava com Olavo Bilac, Graça Aranha, Aluísio e Artur Azevedo, no uso da palavra escrita.



Capoeiras Nagoas (Partido Conservador) versus Capoeiras Guaiamuns (Partido Liberal) 

Os Nagoas e os Guaiamuns foram os dois maiores grupos de capoeiras que dominavam o cenário urbano do Rio de Janeiro a partir da segunda metade do século XIX. Os Nagoas e os Guaiamuns, como se identificavam, eram maltas rivais que brigavam pelo espaço e o destaque na sociedade carioca. Os Nagoas, como o próprio nome diz, remete a Nagô. Era formada somente por escravos africanos, sendo proibida a entrada de negros nascidos no Brasil, mestiços ou brancos.

Os capoeiristas Nagoas tinham filiação partidária com os Conservadores e frequentemente atacavam os Capoeiristas Guaiamuns (composto em sua maiora de mulatos e imigrantes portugueses) que tinham filiação com o Partido Liberal. No período eleitoral, os Capoeiras eram usados pelos políticos da corte como instrumento de intimidação dos eleitores. A eleição de 1880 foi a última com voto indireto e a participação massiva da população, pois em 1881 a Câmara dos Deputados aprovou lei que passava para 200 mil-réis a exigência de renda, proibia o voto dos analfabetos e tornava o voto facultativo, excluindo quase 90% do eleitorado da época. As maltas de Capoeiras do Rio de Janeiro foram extintas por Deodoro da Fonseca em 1890 pela associação desses grupos com a Guarda Negra e o Isabelismo.

Fonte: Capoeira: A History of an Afro-Brazilian Martial Art, de Matthias R. Assunção, citado por Brazil Imperial (será que esse post também foi censurado pelo Facebook?).

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Racismo: Facebook serve à mentira, à censura e à intolerância


Compartilhei um post no Facebook que foi publicado originalmente na página Pedro II do Brasil. O post foi censurado com a seguinte justificativa: "Sua publicação vai contra nossos Padrões da Comunidade, portanto, somente você poderá vê-la". Ora, os tais "Padrões" estabelecem que um post pode ser denunciado por usuários do FB se apresentar problemas relacionados a:

  1. Comportamento violento e criminoso
  2. Segurança
  3. Conteúdo questionável
  4. Integridade e autenticidade
  5. Com respeito à propriedade intelectual
Francamente! O post censurado informa que o engenheiro e empresário André Rebouças (1838-1898) - foto acima -, que era amigo pessoal de D. Pedro II e da Família Imperial, tentou organizar uma resistência ao golpe militar que implantou a República no Brasil. Informa também que ele se ofereceu para proteger os filhos da Princesa Isabel e que atuou como professor destes na Europa, onde a Família Imperial se exilou. A fonte dessas informações é a obra História da queda do Império, de Heitor Lyra, que consta do acervo da biblioteca do IBGE.

Só por esse breve resumo já fica mais do que claro que o post não viola os tais "Padrões da Comunidade" do Facebook! Por que então foi denunciado e censurado? A única explicação plausível é esta: como André Rebouças era negro, sua trajetória depõe contra a narrativa de que a abolição da escravatura não fez diferença para a população negra. Além disso, destacar o papel científico, cultural e/ou político desempenhado por negros como André Rebouças na história brasileira joga contra a estratégia de mitificação de Zumbi dos Palmares, o qual nunca fez nada pela abolição e ainda era rei de um Quilombo dentro do qual havia escravos. 

A existência dos tais "Padrões da Comunidade" do Facebook pode não ser ruim em si mesma, mas está servindo para que militantes políticos autoritários e pessoas comuns com uma visão de mundo intolerante façam denúncias falsas contra um post só porque este informa verdades históricas inconvenientes para as narrativas que essa gente está interessada em impor. Nesse sentido, aqueles "Padrões", ao invés de contribuírem para fazer valer a verdade, servem à mentira, à censura e à intolerância! 

Abaixo, o texto censurado pelo Facebook: desafio quem quer que seja a provar que esse texto viola os tais "Padrões da Comunidade"!

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André Rebouças, Protetor dos Filhos da Princesa Isabel

"Na manhã do dia 15 o Conde d'Eu e a Princesa Isabel faziam, pelas imediações do palácio, o habitual passeio a cavalo na companhia dos filhos, percorrendo laranjeiras até a praia do flamengo - "sem sombra de preocupação", dirá o Conde depois à Condessa de Barrai. O aspecto das ruas e dos transeuntes, a igual de toda a cidade, era o mesmo de sempre. Foi só na volta à casa, quando Gastão se pôs a ler os primeiros jornais do dia, que ele deparou com uma notícia incerta no Diário do Comércio, sobre um "movimento de indisciplina" que teria havido na Escola Militar, e que levará os Ministros a se reunirem, até alta noite, na Secretaria da Guerra. Não deu, porém, maior importância à notícia.

Estavam, assim, todos tranquilos naquela casa quando apareceu, por volta das dez horas, o Alferes Ismael Falcão, com a notícia de que as tropas estavam reunidas em frente do Quartel-General, com o Marechal Deodoro e Quintino Bocaiúva. "Neste caso, disse o Conde d'Eu - acabou se a Monarquia no Brasil".

Mal se tinham vindo a si os donos da casa diante de tais notícias, quando começaram a aparecer, sucessivamente, outros amigos, entre eles o Engenheiro André Rebouças "que me abraça, segundo o seu costume nas ocasiões solenes" - dirá o Conde d'Eu, com o plano que ele combinara com o Visconde de Taunay, de o Imperador ficar em Petrópolis, cercar-se ali de personagens importantes e organizar um Governo para enfrentar a insurreição militar.

O plano também foi apresentado à própria Princesa Isabel, que lamentaria mais tarde, depois de tudo perdido, não ter sido adotado. Além de apresentar um plano concreto de resistência a Deodoro da Fonseca, Rebouças propôs a Princesa Isabel e a Ramiz Galvão, professor dos Príncipes Pedro, Antonio e Luis, deixarem a proteção dos herdeiros da Casa de Orleans e Bragança sob seus cuidados. E sugeriu levá-los ao bordo couraçado Riachuelo e depois a Cidade de Petrópolis onde ficariam a salvo do caos do momento.

A intenção de Rebouças, que o Conde d'Eu demorou a compreender, era acompanhar e zelar pelos pequenos Príncipes Imperiais, aos quais se mostrara sempre muito afeiçoado, substituindo, de um certo modo, o Barão de Ramiz Galvão, que por motivos particulares não os podia acompanhar à Europa. Rebouças desceu de Petrópolis com os príncipes na madrugada de 17 de novembro, já decidido a compartilhar da sorte dos mesmos na Europa. Decidido "a partir para a Europa, - diz rebouças em seu Diário, - "com a Família Imperial, em lugar do Dr, Ramiz Galvão, Impossibilitado de partir pela numerosa família". 

O já deposto Imperador e a princesa Isabel tentaram convencer Rebouças a ficar no Brasil, onde seus conhecimentos seriam de bom proveito a nação, porém o engenheiro e empresário baiano já havia decidido que não iria participar de um governo que considerava ilegítimo, que jamais aceitaria seus planos econômicos de reforma agrária. Se já não podia restaurar o Império, Reboucas pelo menos poderia ajudar o amigo deposto de seu cargo de chefe de estado. Rebouças serviu de professor aos netos do Imperador até a morte do Monarca Brasileiro em 1891".

Fonte: História da queda do Império. Por Heitor Lyra

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segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Atila Iamarino: "vadia de holofotes" pode fazer boa divulgação científica?

Em 18 de março de 2020, Atila Iamarino fez algumas extrapolações assumidamente grosseiras para concluir que, se nada fosse feito, teríamos 1,4 milhões de óbitos por covid até o final de agosto, e 2,6 milhões considerando o colapso do sistema de saúde. Caso fossem adotadas medidas de isolamento de todos os infectados, de seus familiares e de velhos com mais de 70 anos, ainda assim, haveria falta de leitos hospitalares, "dobrando o número de mortes". Disse ainda que, nesse cenário, sem considerar a proporção de idosos na população brasileira, teríamos o equivalente a mais de 1 milhão de óbitos até final de agosto (aqui). Pouco depois, ele declarou à Veja: "eu não quero estar certo" (aqui).

A verdade é que ele errou feio - assim como o Imperial College of London [IC] -, mas fez de tudo para parecer que tinha acertado. Primeiro, caiu em contradição ao tentar explicar que o Brasil estava indo menos mal do que a Europa porque foi rápido em tomar medidas de distanciamento, quando ele próprio havia dito antes que o Brasil já havia perdido a oportunidade de se antecipar ao problema (aqui). No começo de maio, quando os governadores começaram a relaxar medidas de distanciamento que já eram brandas em relação ao que ele e o IC tinham recomendado em março, Iamarino usou um novo estudo do IC para concluir que tinha sido "otimista" (sic!) ao prever que haveria 1 milhão de mortes no final de agosto (aqui). Em 14 de julho, quando já era indiscutível que o número de óbitos ficaria muito abaixo dessas previsões, Iamarino procurou minimizar o erro apresentando uma tabela com diferentes cenários de propagação do vírus conforme o número de reprodução "R". Sua conclusão, com base nessa tabela, foi que "os números que dei em março podem continuar válidos, mas tão errados" (aqui). 

Como é que os números podem ser válidos se estão errados!? Na sequência do fio, ele usa os números da tabela para dizer que, quanto mais rígido for o isolamento, menos pessoas se contagiam e menos pessoas morrem, tal como ele tinha dito antes... O argumento é ridículo porque essa conclusão não saiu dos números que ele apresentou em março comparados aos dados concretos sobre a velocidade do contágio, mas sim dos números na tabela que ele mesmo montou depois, os quais mostram três situações hipotéticas: quantos morreriam se R fosse igual a 2,8, se R fosse 1,5 e se R fosse 1,2. Ora, se a eficácia das políticas de distanciamento pode ser demonstrada aplicando-se números hipotéticos a uma fórmula matemática, isso significa que as projeções que ele apresentou em março eram desnecessárias como evidência para demostrar tal eficácia, de sorte que comparar aqueles números com os da tabela não valida coisa nenhuma! 

Depois de tentar nos convencer de que números assumidamente errados podem ser "válidos", reconheceu, em 02 de agosto, que o número real de óbitos era muitas vezes inferior aos mais de 1 milhão que ele tinha previsto em março e em maio, como segue (aqui):


Se fosse um bom divulgador da ciência, Iamarino explicaria em detalhes por que os modelos do IC que ele propagandeou ficaram tão longe da realidade. Seus seguidores aprenderiam um pouco mais sobre epidemiologia com tais explicações, e ele teria cumprido bem o trabalho de divulgação científica que diz fazer. Em vez disso, porém, ele usou o argumento da subnotificação para afirmar que o número real é muito pior e usou imagens com forte apelo emocional para convencer seus leitores de que ele é uma pessoa cheia de boas intenções: "Titanic afundando"; "eu tô tentando apontar buracos para pararmos de afundar"... 

Previsões e motivações

Apesar dessa retórica convenientemente emotiva, será que ao menos ele acertou ao dizer que o Brasil teria entre 140 mil e 233 mil óbitos já no começo de agosto? Bem, no início da pandemia, cientistas estimaram que o atraso da notificação seria de 10 dias (aqui). Então, como hoje é 02 de novembro, tivemos tempo muito mais do que suficiente para corrigir os dados, certo? Mas, segundo o Our World in Data, os dados atualizados hoje confirmam que, em 02 de agosto, o número de mortes acumuladas era de 93.563 (aqui). 

Será que a maioria das notificações de óbitos está sendo escondida de propósito para desacreditar Iamarino e outros arautos do apocalipse? Mas, se os dados estão ocultos, como é que Iamarino sabe que o número real de óbitos é de 1,5 a 2,5 vezes maior?

Sobre as estimativas de subnotificação, ressalto três coisas: 
  1. Os cientistas do Observatório Covid-19 BR só começaram a se preocupar com a subnotificação quando os números oficiais mostraram que as projeções catastróficas deles estavam sendo invalidadas pelos fatos, razão pela qual, contraditoriamente, deixaram de usar os dados oficiais para calcular a velocidade de duplicação do número de casos (aqui);
  2. Como o Brasil faz muito poucos testes, vários grupos de especialistas usaram comparações internacionais para estimar que o número real de casos deve ser de 8 a 14 vezes maior que o oficial, podendo chegar até a 20 vezes mais. Contudo, mesmo esses especialistas preferem não fazer estimativas sobre o número real de óbitos, já que isso é bem mais complicado (aqui). 
  3. Outro problema com essas avaliações é responder à seguinte pergunta: se o número real de casos é tão grande, como é que os sistemas de saúde brasileiros, na maior parte dos casos, deram conta da demanda? Em abril, o Portal Covid-19 afirmou, com base num modelo matemático, que o número real de casos seria 15 vezes superior e, por isso, previu que o sistema de saúde do estado de São Paulo poderia mergulhar no caos em duas semanas (aqui). Essa previsão fracassou, muito embora o governo paulista tenha começado a relaxar o distanciamento já no começo de maio. 
Diante de tudo isso, de onde vem a certeza de Iamarino ao afirmar que o número de mortes real é de 1,5 a 2,5 vezes maior? Considerando sua insistência em prever mais de 1 milhão de mortes até agosto, não há motivo algum para confiar que ele esteja sendo razoável agora. 


Se Atila Iamarino tivesse admitido logo que as primeiras projeções que ele divulgou estavam erradas, se não tivesse caído em contradição ao avaliar as políticas de distanciamento praticadas no Brasil, se não tivesse usado truques de retórica para afirmar que números errados podem ser "válidos", e se não tivesse feito apelação emocional para disfarçar seus erros, poderíamos supor que se equivocou naturalmente, como acontece com todo mundo. Mas, diante dessas estratégias retóricas, que depõem contra os objetivos e a boa prática da divulgação científica, as hipóteses mais prováveis para explicar seus erros são duas: ou ele se deixou levar pela emoção e exagerou as previsões propositalmente com o objetivo de assustar as pessoas e de convencer as autoridades a aplicar as medidas de isolamento extremamente radicais que ele recomendou; ou ele é tão ávido por holofotes que pintou o quadro mais tenebroso possível por saber que a imprensa sempre tende a dar mais atenção às notícias ruins e aos piores prognósticos. E é bom termos em mente que as duas hipóteses não são mutuamente excludentes...

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Pandemia: políticos agem com um olho nas urnas e outro no caixa do governo

No começo de maio e no começo de junho de 2020, as redes sociais reverberaram a perplexidade de muita gente com o fato de os estados terem adotado medidas de controle da pandemia mais restritivas  em meados de março, quando os números de casos e de mortes eram pequenos, e relaxado tais medidas justo quando esses números estavam mais altos do que nunca. Domingos Alves, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto, afirmou: "O Brasil é o único país que abriu [a economia] com aumento de casos e óbitos" (aqui). Apesar disso, não é difícil entender por que isso foi feito quando nos lembramos de que o homem reage a incentivos e, no caso dos políticos, isso implica agir com um olho nas urnas e outro nas restrições de caixa.

Vejamos: Bolsonaro recebeu o Estado falido pela incompetência e retardamento ideológico do governo Dilma. Logo, sabia que as medidas de distanciamento iriam derrubar drasticamente a arrecadação fiscal e que os investimentos em saúde e assistência social teriam de ser ampliados. Isso agravaria ainda mais a crise fiscal do Estado, cujas despesas já superavam em muito a arrecadação, e de forma crescente, desde o governo petista. De outro lado, os governadores sabiam que a situação fiscal de seus estados também estava bastante comprometida (sobretudo por conta dos gastos previdenciários), mas também tinham em mente três coisas:
  1. que a impopularidade causada por crises econômicas sempre atinge com intensidade o governo federal, mas não os governos locais;
  2. que poderiam pedir ajuda financeira para o governo federal (como sempre!) a fim de amenizar os efeitos das medidas de distanciamento;
  3. que várias pesquisas de opinião pública mostraram que a maior parte da população desejava a execução de medidas duras para barrar a pandemia, como o lockdown;
Não surpreende, portanto, que as primeiras medidas de distanciamento social tenham sido tomadas em meados de março: os governadores atenderam ao apelo popular, e os bolsonaristas mais empedernidos apoiaram as provocações e críticas do presidente contra as medidas. Em 27 de maio, uma pesquisa do Datafolha mostrava resultados interessantes: 60% dos entrevistados achavam que seria recomendável um lockdown e 36% eram contra, mas, ao mesmo tempo, a adesão às medidas de distanciamento havia caído um pouco desde um mês antes (aqui). Apesar disso, a arrecadação do ICMS já havia despencado, e os governadores sabiam que a ajuda do governo federal não seria suficiente para manter a capacidade de gasto dos estados por muito tempo. Chegaria a hora em que seria inviável continuar pagando os salários do funcionalismo, entre outras despesas mandatórias. E, se existe uma coisa sacrossanta no Brasil, são os salários e privilégios do funcionalismo público...

Assim, Doria e outros governadores contrariaram a maioria da opinião pública e abrandaram as medidas que, desde o início, eram mais brandas do que o recomendado por muitos epidemiologistas. O resultado foi que, depois de uma fortíssima queda da atividade econômica no mês de abril, houve leve crescimento nos meses de maio e junho, em comparação com abril (aqui).

Isso não significa, é claro, que os governadores e prefeitos ignoraram completamente a necessidade de controlar a pandemia. Afinal, se o número de casos explodisse, superando a capacidade de atendimento dos sistemas de saúde, o número de mortes poderia disparar, e os noticiários mostrariam cenas dramáticas de gente morrendo por falta de leitos e de UTI, o que poderia ter efeitos muito danosos para a imagem pública desses governantes. Portanto, governadores e prefeitos montaram equipes de especialistas para monitorar os números de casos, de óbitos, capacidade de atendimento hospitalar e de demanda por serviços médicos com o fim de abrandar as medidas de distanciamento tanto quanto possível sem, entretanto, ocasionar o colapso dos sistemas de saúde.

E não há como negar que essas medidas atingiram o objetivo. Contrariando especialistas que afirmaram que poderia haver "rebote" do número de casos e de mortes, vimos que a taxa de contágio diminuiu de junho em diante, de sorte que as curvas do número diário de casos e do número diário de óbitos permaneceram "achatadas", preservando a capacidade de atendimento hospitalar. Hoje, essas taxas tendem a declinar, e há boas evidências científicas de que a imunidade de rebanho já foi atingida em alguns estados.

Mas e a vacina?

No final das contas, podemos avaliar que os governadores e prefeitos, de um modo geral, agiram corretamente, ao menos com base nas informações disponíveis até o momento. Mas será que não teria sido melhor prolongar as medidas de distanciamento tomadas em meados de março, a fim de salvar mais vidas? No curto prazo, é óbvio que a resposta é "sim". Mas, no médio e longo prazos, a resposta depende de saber quando haverá uma vacina eficaz contra o covid-19 e quando essa vacina poderá ser aplicada de forma massiva no Brasil. Se a vacina vier logo, talvez cheguemos à conclusão de que poderíamos ter salvo muito mais gente sem causar tanto dano à economia quanto o que era esperado inicialmente. Mas, se a vacina demorar, poderá ficar claro que as decisões de governadores e prefeitos, mesmo tomadas com um olho nas urnas e outro no caixa, foram as melhores para combinar controle da pandemia com crescimento econômico, o qual também é vital para salvar vidas, uma vez que recessão também mata muito (aqui)

No reino das escolhas trágicas, não há estratégia boa; só estratégias menos ruins.

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quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Doria versus Bolsonaro: o primeiro agiu certo




Não gosto de fazer previsões em assuntos nos quais sou leigo, como é o caso das políticas sanitárias para conter pandemias. Quando Bolsonaro entrou em guerra com vários governadores por conta das medidas contra o coronavírus, decidi não fazer avaliações antes de observar os resultados dessas medidas. As considerações que farei agora sobre o modo como o Brasil vem lidando com o problema vão ter como focos principais o governo federal e o do estado de São Paulo, que é o estado com maior número de casos e de mortes.

De início, é bom notar que as projeções catastrofistas do Imperial College of London (IC) e do biólogo Atila Iamarino erraram feio ao desenharem cenários sobre a velocidade com que a doença se espalharia no Brasil e sobre o número de mortes. O próprio Iamarino reconheceu mais tarde que o Brasil estava em situação melhor do que EUA, Itália, Espanha, França e Reino Unido, mas, para não ter de admitir que exagerou, disse que o Brasil estava melhor por ter agido rápido, afirmação essa que contradiz o que ele mesmo havia publicado no Twitter, em 13 de março, sobre a demora brasileira em agir (aqui). No começo de maio e, outra vez, no começo de junho, as medidas de distanciamento estabelecidas pelos governadores, que desde o início eram brandas em comparação com as recomendadas pelo IC e por Iamarino, foram relaxadas (aqui). Ainda assim, o contágio perdeu velocidade em São Paulo, Rio de Janeiro e também no Norte e Nordeste, de sorte que as curvas nacionais de casos diários e também de mortes diárias foram "achatadas" (acima). Só não houve queda na média nacional de casos e de mortes porque a pandemia se acelerou em Minas Gerais, no Sul (com o início do inverno) e também no Centro-Oeste, onde o vírus demorou mais tempo para chegar.

Bem, isso significa que Bolsonaro tinha razão em minimizar o problema e em recusar-se a fechar as fronteiras do país? Ele estava certo em ficar fazendo críticas e provocações contra os governadores que decidiram tomar medidas de distanciamento social e em criar empecilhos normativos até para a obrigatoriedade do uso de máscaras? Observando-se os números, está claro que, se Iamarino e outros especialistas exageraram muito o problema, Bolsonaro errou feio no sentido contrário.

Escolhas trágicas

Ora, o objetivo das variadas políticas de distanciamento social, isolamento, supressão, lockdown, etc. é "achatar a curva" do número de casos de modo a evitar que a demanda por hospitalização e por serviços de UTI ultrapasse a capacidade de atendimento dos sistemas de saúde. Após o início da pandemia (embora não de forma imediata, é óbvio) a oferta de leitos de UTI cresceu 45% no Brasil. Ainda assim, houve vários casos localizados de saturação dos serviços hospitalares, sendo Manaus o pior de todos, com a capacidade do sistema superada em 500% (aqui)! Na capital paulista, a ocupação de leitos hospitalares chegou a 91%, mas recuou, mesmo depois que as medidas de distanciamento já tinham sido relaxadas. 

Diante desse quadro, é fácil perceber que, se nada tivesse sido feito, haveria muito mais episódios de colapso dos sistemas de saúde no Brasil, levando a ainda mais mortes por covid e também por falta de atendimento de pacientes com outros problemas graves de saúde. Nesse sentido, podemos concluir que Doria e vários outros governadores e prefeitos agiram de forma acertada. De um lado, evitaram implementar uma política de supressão rígida e prolongada, a qual salvaria mais vidas no curto e médio prazos, mas sem garantia de continuar salvando no longo prazo[*], e cujos efeitos sociais seriam ainda mais destruidores do que os causados pelas medidas de distanciamento efetivamente tomadas. De outro lado, não minimizaram o problema e nem tentaram justificar a pouca ação com discursos que exageram a eficiência de certos medicamentos ou que não passam de tolices sobre "histórico de atleta", entre outras falas populistas de Bolsonaro.

Mas não quero fazer uma análise moralista e ingênua, segundo a qual os políticos que agiram da forma como eu considero mais acertada assim fizeram por terem tido maior sensibilidade para a situação dos pobres sem descuidarem da pandemia. O homem reage a incentivos, afinal, e é ao considerar os incentivos que influenciam as decisões políticas que conseguimos entender melhor as escolhas dos dirigentes. No caso, os governadores agiram com um olho nas urnas e outro no caixa do governo. Trato disso no próximo post, pois este já ficou muito grande.

[*] Diversas pesquisas internacionais levaram à hipótese de que a aplicação por seis meses ou mais de medidas rígidas de lockdown ou de quarentena severa é a estratégia que mais salva vidas no curto e médio prazos, mas, no longo prazo, pode matar tanto quanto não fazer nada. As medidas mais eficazes para salvar pessoas sem prejudicar demais a economia seriam a aplicação de testes em massa e isolamento dos doentes, segundo esses estudos (aqui).

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