Um vídeo do epidemiologista Atila Iamarino que vem sendo bastante compartilhado nas redes sociais faz uma comparação das estatísticas do Brasil, EUA, Itália, Espanha, França e Reino Unido e, com base nesses números e em projeções, conclui que o Brasil exibe bem menos mortes registradas do que os outros porque foi bem rápido em tomar medidas de isolamento (aqui). A primeira conclusão a extrair dessa fala é que Iamarino teria acertado, no mês de março, quando afirmou que a epidemia se espalhava aqui tão depressa quanto na Itália ou EUA e que medidas de supressão deveriam ser tomadas o quanto antes, e prolongadas por vários meses, para evitar uma hecatombe. A segunda conclusão é que os fatores mais importantes para explicar o grau de sucesso de um país no combate à pandemia seriam a precocidade e intensidade das medidas de isolamento adotadas.
Bem, é chato dizer, mas o que esse autor andou escrevendo no Twitter em 13 de março indica que, na visão dele, o Brasil já havia perdido a chance de se antecipar:
Nós tivemos 2 meses pra ver o que aconteceu com a China (e menosprezar por ser outra cultura), 1 mês pra ver o que aconteceu com a Itália e Japão. Já poderíamos ter planejado fechamento de escola, ajuda com empresa pra mandar gente pra casa, treinado as pessoas pra se afastarem.10:44 PM · 13 de mar de 2020 (aqui)
Não aproveitamos a oportunidade, provavelmente pelo bem da economia e para não gerar pânico de mercado. Vamos ver o caminho onde entramos. Não deixem as pessoas culparem o vírus lá na frente. Isso não aconteceu, isso foi decidido.10:44 PM · 13 de mar de 2020 (aqui)
No dia 18 de março, Iamarino usou uma pesquisa do Imperial College of London para, por meio da extrapolação dos dados sobre os EUA para a realidade brasileira, traçar os seguintes cenários (aqui):
- Se nada fosse feito, haveria 1,4 milhões de mortos pelo coronavírus no Brasil até agosto de 2020 e 2,6 milhões de mortos devido ao colapso do sistema de saúde, já que a demanda por leitos hospitalares, UTIs e por respiradores ultrapassaria em muitas vezes a capacidade de atendimento.
- Já o "melhor cenário de mitigação" seria "[...] todo mundo com sintomas é isolado em casa, a família é quarentenada e isolamos idosos com mais de 70 anos";"[...] ainda faltam leitos, o que dobra a mortalidade. Extrapolando essa situação pro Brasil (sem levar em conta a proporção de idosos aqui) seria o equivalente a ainda ter mais de 1 milhão de brasileiros mortos até o fim de agosto".
- "A única forma de diminuir drasticamente as mortes pela simulação seria a supressão: escolas e universidades fechadas, idosos isolados, casos sintomáticos e familiares isolados e a maior parte dos locais públicos ou com muita gente (como trabalho) fechados".
- "Nesse cenário, a maior parte das pessoas se salvam. Temos alguns milhares de mortos por algumas semanas, mas os casos caem. Quase todo mundo que precisa de UTI é tratado. Sem milhões de mortes. MAS se suspender a supressão, casos explodem e milhões de mortes de novo".
Ora, se essas previsões de meados de março estivessem corretas, Iamarino jamais poderia falar agora como se o Brasil fosse um exemplo para o mundo, o país que agiu rápido e com muita firmeza para salvar vidas. Afinal, nós não isolamos a população idosa, não isolamos os infectados e nem suas famílias. Para isso, teríamos de fazer testes em massa para identificar os doentes (sintomáticos e assintomáticos), mas o Brasil efetua apenas 269 testes por milhão de habitantes. Portanto, é ponto pacífico que o Brasil não aplicou a política de supressão recomendada por Iamarino. O que fizemos (com diferenças entre estados) foi uma política de distanciamento social sem o reforço do isolamento daqueles grupos.
Mas será que, apesar disso, tais medidas de distanciamento não teriam sido rápidas e rígidas o bastante para nos aproximarmos da supressão? Bem, o presidente Bolsonaro declarou que o covid-19 é "só uma gripinha" e, sendo assim, não declarou quarentena nacional e nem sequer restringiu a entrada de pessoas vindas do exterior pelos aeroportos, mesmo em se tratando de viajantes provenientes de países muito atingidos pela epidemia, como EUA e Itália. Esse governo até bloqueou algumas iniciativas estaduais, pois a Anvisa entrou na justiça para impedir alguns governadores de aplicarem uma política de medir a febre de pessoas chegadas do exterior nos aeroportos. Em função disso, a epidemia já havia chegado até a aldeias indígenas no dia 30 de março (aqui).
Devido à inação do governo federal, as medidas de distanciamento foram sendo implantadas de forma progressiva e descoordenada, à semelhança do que aconteceu nos EUA, onde governadores foram implantando medidas mais rígidas do que aquelas tomadas por Trump. No dia 16 de março, a imprensa anunciava que as medidas de isolamento se restringiam a "alguns estados", como São Paulo (aqui). Não é à toa que, três dias antes, Iamarino tuitava que não estávamos aproveitando a oportunidade. Em 27 de março, os governadores de Santa Catarina, Mato Grosso e Rondônia anunciavam que iriam permitir a reabertura de algumas atividades de comércio e serviços, enquanto a grande maioria dos governadores declarava que as restrições seriam mantidas (aqui).
Em face da descoordenação, é preciso contar com a tecnologia para tentar conhecer a efetividade das medidas de restrição por estado e na média nacional. No dia 02 de abril, a imprensa informava que, segundo levantamento feito por uma empresa de software de geolocalização aplicado a smartphones, a média nacional de pessoas em casa era de 58,3% (aqui). Se esse levantamento for razoavelmente preciso, significa que cerca de 40% da população não estava propriamente isolada até começo de abril, de modo que as medidas de distanciamento social aplicadas no Brasil não foram precoces e ficaram muito aquém do que foi recomendado por Atila Iamarino para evitar que o Brasil repetisse o desastre italiano.
Portanto, o caso brasileiro depõe contra a segunda conclusão mencionada acima, isto é, a de que a precocidade e intensidade das medidas de isolamento são os fatores mais importantes para explicar o grau de sucesso alcançado por cada país. Mas seria o Brasil o único ponto fora da curva?
Não. Poderíamos citar também o caso japonês. Até o dia 24 de março, o governo japonês não havia nem sequer proibido as pessoas de saírem às ruas, embora a doença já tivesse chegado ao país havia cerca de dois meses - antes de ter chegado à Europa, portanto (aqui). Foi só em 07 de abril que o governo desse país decidiu declarar estado de emergência. Mesmo assim, o Japão registrou pouquíssimos óbitos diários nos meses de janeiro até começo de abril, e acumulava apenas 85 mortes naquela data. De outro lado, Itália, Espanha e França implantaram medidas duras de quarentena entre os dias 09 e 17 de março, mas, ainda assim, amargaram centenas de óbitos por dia dali até 12 de abril, acumulando milhares de mortes cada um (aqui).
Qual é a explicação que Atila Iamarino dá ao caso japonês no vídeo citado acima? Nenhuma, pois os gráficos que ele mostrou não incluíam o Japão. A impressão que fica é que o autor selecionou apenas os casos que supostamente confirmam sua teoria e ignorou os casos que não se encaixam. Um artifício válido nos campos do direito e da política, em que se trabalha com a retórica, mas não no campo científico, no qual é preciso levar em conta todos os casos.
Cientistas e professores odeiam quando pessoas leigas num assunto preferem dar ouvidos a jornalistas e políticos que confirmam as convicções delas ao invés de confiarem nos especialistas. Mas, quando até um leigo em epidemiologia, como é o meu caso, consegue perceber pela análise dos fatos que um cientista de currículo reconhecido pode estar se contradizendo e filtrando informações, fica difícil deixar de pensar que aquela atitude de desconfiança de boa parte do público é estimulada pela forma como alguns cientistas participam dos debates públicos.
P.S. - Obviamente, não nego que medidas de isolamento salvam vidas. A questão é que precisamos conhecer bem as causas das diferenças de desempenho entre países para calibrar essas medidas (ver abaixo). Afinal, é inconteste que distanciamento social diminui as taxas de infecção e de mortalidade, mas é igualmente inconteste que distanciamento gera recessão e que recessão também mata.
Postagens relacionadas
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu comentário foi enviado e está aguardando moderação.