sexta-feira, 10 de abril de 2020

"Instinto de negatividade" na pandemia

O médico Hans Rosling chamava de "instinto de negatividade" à tendência que as pessoas têm de prestarem muito mais atenção às informações negativas do que às positivas. Essa seria uma das razões que explicam por que a maioria das pessoas, mesmo as mais instruídas, acha que o mundo está piorando, quando todas as evidências empíricas provam que o mundo melhorou enormemente nas últimas décadas, em quase todos os países e em todos os setores (Rosling, 2019). 

Ora, a reação de muitos brasileiros à atual pandemia é um exemplo interessante de como esse instinto opera. Quando surgiram os primeiros casos confirmados da doença no Brasil, os pesquisadores do Observatório Covid-19 BR afirmaram que esta vinha se disseminando aqui à mesma velocidade com que havia se espalhado na Itália e na Espanha poucas semanas antes. Isso deixou a opinião pública alarmada, e com toda razão. Contudo, os cálculos efetuados pelos cientistas estavam errados!

Em 20 de março de 2020, com efeito, o Observatório estimou que, no dia 24 de março, haveria um mínimo de 2.714 e um máximo de 3.400 casos no Brasil. E previram que a tendência a partir dali era de o número de casos dobrar a cada 54 horas e 43 minutos. Todavia, os números oficiais mostram que o número de casos no dia 24 era de apenas 2.201. Bem menos do que o mínimo estimado! Além disso, se o número de casos dobrasse naquela velocidade, deveriam haver 86.848 casos até o dia 11 de abril. Só que o número de casos confirmados nessa data ficou em apenas 10.278...

Todavia, quando eu comento com as pessoas nas redes sociais que essa e outras projeções falharam, quase todas se mostram céticas e dizem: "Mas os números oficiais são subestimados! Para saber com certeza teríamos de fazer muitos testes, mas não fazemos! O número real com certeza é muito maior"! 

Essa resposta demonstra que as pessoas se deixam levar pelo "instinto de negatividade" a tal ponto que não percebem que o argumento da falta de testes tanto pode servir para dizer que o número real é muito maior como também para explicar por que as projeções iniciais do Observatório exageraram.

A razão é simples: como o Brasil faz poucos testes (e a grande maioria dos países também testa pouca gente) isso significa que é bastante razoável supor que a doença não chegou ao Brasil em 26 de fevereiro, data do primeiro caso confirmado, mas bem antes disso. Afinal, já que o número de pessoas testadas é pequeno, nada mais lógico que a doença tenha chegado ao Brasil semanas antes do que se pensa e se disseminado por um bom tempo até ser detectada pela primeira vez, certo? Os pesquisadores do Observatório teriam errado por que supuseram que o primeiro caso confirmado era realmente o primeiro caso de todos? Olharam os números de infecções relativos aos dias entre o final de fevereiro e começo de março e acharam que estavam vendo o início da pandemia no Brasil, quando o que viam era a doença já com algumas semanas de infecção?

Na verdade, os cálculos e projeções que esses cientistas elaboraram tomavam como ponto de partida o dia 14 de março, quando já havia 121 casos registrados, porque esse era o número mínimo necessário para que os cálculos pudessem ser feitos. Mas então por que as projeções falharam?

Seja qual for a resposta, a reação de muitas pessoas à notícia de que o Covid-19 não se espalhou no Brasil tão depressa quanto na Itália demonstra que elas se deixam levar pelo "instinto de negatividade" ao ponto de argumentarem de forma contraditória, pois não percebem que a razão que alegam para acreditar no pior cenário possível é exatamente a mesma que nos ajuda a explicar por que esse cenário não se realizou até o momento. 

P.S. - Não pretendo substituir o instinto de negatividade por um otimismo exagerado. O número diário de mortes continua crescendo devagar, sem tendência exponencial, mas mudou um tanto de patamar no início de abril. Apenas ressalto que as previsões mais catastróficas falharam, e isso tem de ser levado em conta no planejamento de medidas de isolamento, cujos efeitos sociais são terríveis.

Atualização do post (15.07.20) - "[...] cientistas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) identificaram a presença do vírus em amostras de esgoto congeladas, que foram coletadas a partir de 27 de novembro [de 2019]". A mesma matéria informa que, na Espanha, o vírus já estava presente nos esgotos um ano antes do primeiro caso registrado da doença  (aqui). Portanto, as estimativas do Observatório em março falharam ao concluir que a doença estava se espalhando aqui com a mesma velocidade com que havia se espalhado em países como Itália e Espanha, e a falha ocorreu porque esse grupo não levou em conta que o vírus, muito provavelmente, havia chegado ao Brasil antes do que se imaginava, sendo que o pequeno número de testes realizados era o principal motivo para levar isso em consideração.

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ROSLING, H. Factfulness: o hábito libertador de só ter opiniões baseadas em fatos. 2. ed. Rio de Janeiro: Record,  2019.

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