segunda-feira, 13 de abril de 2020

Pandemia nos pôs no mundo das escolhas trágicas

Um clichê muito comum nos filmes de ação e de super-heróis é o que eu chamo de “falsa escolha trágica”. Aquele momento em que o vilão força o herói a escolher entre salvar a vida da mulher que ele ama ou salvar o mundo, a cidade, ou dezenas de pessoas que ele não conhece. Mas, embora o herói sempre opte por salvar primeiro quem ele ama, sempre acaba tendo tempo de salvar também as outras pessoas. Então a escolha trágica é falsa, pois o herói não é realmente obrigado a escolher quem vai salvar: ele salva todo mundo, pronto.


Pena que o mundo real não seja assim. Na vida real, há ocasiões em que se é obrigado a escolher quem morre e quem vive, ou a escolher entre mais mortes ou menos mortes. E o pior: sem ter certeza sobre qual decisão vai matar mais. É bem nessa situação que a pandemia colocou o mundo. 


Isolamento horizontal prolongado nem sempre é necessário e nem todos podem bancar 


Todo mundo, inclusive eu, já disse que EUA e Itália estão em situação pior do que os outros países porque demoraram a agir. Mas, à medida em que o tempo foi passando, ficou claro que não é bem assim [*].


A França decretou quarentena em 17.03 e já tem 14,3 mil mortes registradas. A Espanha decretou quarentena em 15 de março e já acumulou 16,9 mil mortes. A Itália decretou quarentena nacional em 09 de março, mas já está com 19,8 mil mortes confirmadas. 


A doença chegou ao Japão antes de chegar a esses países todos e, mesmo assim, os japoneses só decretaram estado de emergência em 07 de abril. Até aquela data, esse país registrava só 85 mortes acumuladas. Em 12 de abril, eram 108 mortes.


Os EUA até que se parecem com o Brasil. Lá, assim como aqui, o isolamento horizontal foi se estabelecendo de forma progressiva e diferenciada por estado, já que os governadores implantaram medidas mais restritivas do que o governo Federal. Mas a diferença de resultado é abissal: os EUA já contam 21,3 mil mortes, enquanto o Brasil registra apenas 1,1 mil mortes. 


Esses fatos mostram que a precocidade e intensidade das medidas de isolamento não são os fatores mais importantes para explicar as diferenças de desempenho entre os países. E nem dá para dizer que o isolamento horizontal é a única alternativa que funciona: quando o Japão decretou estado de emergência alegando perigo de descontrole, estava em situação muitíssimo melhor do que a de quase todos os países do mundo. Logo, o isolamento horizontal não era uma necessidade absoluta para esse país. Lá, o endurecimento das medidas foi uma resposta do governo ao estado psicológico da população, que, na sua maior parte, apoia medidas de isolamento pelo desejo de salvar o maior número possível de vidas. É compreensível as pessoas quererem salvar o máximo de vidas em números absolutos, sem se importarem se estão em situação relativa melhor ou pior. Ainda assim, o governo japonês só tomou essa decisão porque irá levantar 1 trilhão de dólares para custear o isolamento… Pouquíssimos países podem contar com tantos recursos assim.


Isso significa que nem todos os países precisam de isolamento horizontal e que a maioria dos que talvez precisem ou desejam implementar essa medida não têm dinheiro para isso. Mas, se as medidas de isolamento não são o fator mais importante para explicar as diferenças de desempenho entre países, qual seria? 


Pelo que eu li até o momento, a melhor hipótese é a das políticas nacionais de aplicação de vacina BCG. Sabe-se há tempos que a vacina BCG não imuniza só contra a tuberculose, mas também contra vários tipos de doenças respiratórias. Os pesquisadores do Departamento de Biomedicina do Instituto de Tecnologia de Nova Iorque resolveram então testar se havia correlação entre as políticas de aplicação universal de BCG e as taxas de infecção, morbidade e de mortalidade por covid-19. 


O que descobriram? Países sem políticas universais de aplicação de vacina BCG, ou que interromperam tais políticas, estão sofrendo muito mais com esse vírus: EUA, Itália, Espanha, França e Holanda, entre outros. O caso do Irã é ilustrativo porque esse país só começou com a vacinação universal em 1984 e, portanto, não imunizou sua população idosa. De outro lado, países com políticas de vacinação universal e obrigatória iniciadas há mais tempo e mantidas continuamente são os que têm as menores taxas de infecção e de mortalidade. Entre eles estão o Japão, que deu início a tal política em 1947, e o Brasil, que começou em 1920.


Mas é certo que identificar uma correlação entre dois fatores não significa que não haja outros fatores atuando. O Japão pode ter sido ajudado também por sua “cultura de resguardo”, como já comentou um infectologista brasileiro. O Brasil não conta com essa cultura, mas pode estar sendo beneficiado em alguma medida pelo fato de que, como já é conhecido desde os anos 1980, os vírus da classe corona não se disseminam tão depressa em regiões de clima quente.


Escolhas trágicas


Se as projeções do Imperial College of London sobre o Brasil tivessem acertado, nós estaríamos agora no rumo de uma hecatombe: cerca de 1 milhão de mortes. Tivemos sorte, pois, mesmo com medidas bastante frouxas (em comparação com aquelas recomendadas por essa instituição e pelo epidemiologista Atila Iamarino), estamos nos saindo bem na comparação com EUA, Itália, Espanha, França, Equador, etc. 


Mas o problema é que as medidas de isolamento já tomadas, mesmo sendo brandas, têm efeitos econômicos potencialmente desastrosos. Recessão também mata; e mata muito. Em apenas um ano, o número de pobres e de miseráveis poderá crescer facilmente em milhões de pessoas (ver abaixo). E nós não dispomos de recursos para bancar medidas rígidas e prolongadas de isolamento, ao contrário de outros países citados aqui. Só com as medidas tomadas até o momento, o governo de Minas Gerais já está ficando sem dinheiro até para pagar o funcionalismo.

Então o melhor seria começar a abrandar as medidas de isolamento a partir de agora? Talvez não, pois não podemos olhar o número de infectados e de mortos sem levar em conta a capacidade do nosso sistema de saúde, especialmente no que diz respeito ao atendimento em UTI. No Brasil, a taxa de leitos hospitalares é inferior ao mínimo recomendado pela OMS para épocas normais. Só isso já é uma boa indicação de que nosso sistema de saúde pode entrar em colapso mesmo com um ritmo de infecções e de mortes diárias muito inferior ao dos países mais afetados.

É possível que o Brasil esteja diante de uma escolha trágica: se as medidas de isolamento forem prolongadas ou intensificadas, o desastre econômico será de tal ordem que, muito provavelmente, vai matar mais do que a pandemia, ainda que num prazo mais longo. Por outro lado, se as medidas forem abrandadas, mais gente vai morrer pelo vírus. E não adianta chamar pelo Super-Homem.

[*]: Os números citados for obtidos em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51987873. Acesso em: 12 abr. 2020.


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