No começo de maio e no começo de junho de 2020, as redes sociais reverberaram a perplexidade de muita gente com o fato de os estados terem adotado medidas de controle da pandemia mais restritivas em meados de março, quando os números de casos e de mortes eram pequenos, e relaxado tais medidas justo quando esses números estavam mais altos do que nunca. Domingos Alves, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto, afirmou: "O Brasil é o único país que abriu [a economia] com aumento de casos e óbitos" (aqui). Apesar disso, não é difícil entender por que isso foi feito quando nos lembramos de que o homem reage a incentivos e, no caso dos políticos, isso implica agir com um olho nas urnas e outro nas restrições de caixa.
Vejamos: Bolsonaro recebeu o Estado falido pela incompetência e retardamento ideológico do governo Dilma. Logo, sabia que as medidas de distanciamento iriam derrubar drasticamente a arrecadação fiscal e que os investimentos em saúde e assistência social teriam de ser ampliados. Isso agravaria ainda mais a crise fiscal do Estado, cujas despesas já superavam em muito a arrecadação, e de forma crescente, desde o governo petista. De outro lado, os governadores sabiam que a situação fiscal de seus estados também estava bastante comprometida (sobretudo por conta dos gastos previdenciários), mas também tinham em mente três coisas:
- que a impopularidade causada por crises econômicas sempre atinge com intensidade o governo federal, mas não os governos locais;
- que poderiam pedir ajuda financeira para o governo federal (como sempre!) a fim de amenizar os efeitos das medidas de distanciamento;
- que várias pesquisas de opinião pública mostraram que a maior parte da população desejava a execução de medidas duras para barrar a pandemia, como o lockdown;
Assim, Doria e outros governadores contrariaram a maioria da opinião pública e abrandaram as medidas que, desde o início, eram mais brandas do que o recomendado por muitos epidemiologistas. O resultado foi que, depois de uma fortíssima queda da atividade econômica no mês de abril, houve leve crescimento nos meses de maio e junho, em comparação com abril (aqui).
Isso não significa, é claro, que os governadores e prefeitos ignoraram completamente a necessidade de controlar a pandemia. Afinal, se o número de casos explodisse, superando a capacidade de atendimento dos sistemas de saúde, o número de mortes poderia disparar, e os noticiários mostrariam cenas dramáticas de gente morrendo por falta de leitos e de UTI, o que poderia ter efeitos muito danosos para a imagem pública desses governantes. Portanto, governadores e prefeitos montaram equipes de especialistas para monitorar os números de casos, de óbitos, capacidade de atendimento hospitalar e de demanda por serviços médicos com o fim de abrandar as medidas de distanciamento tanto quanto possível sem, entretanto, ocasionar o colapso dos sistemas de saúde.
E não há como negar que essas medidas atingiram o objetivo. Contrariando especialistas que afirmaram que poderia haver "rebote" do número de casos e de mortes, vimos que a taxa de contágio diminuiu de junho em diante, de sorte que as curvas do número diário de casos e do número diário de óbitos permaneceram "achatadas", preservando a capacidade de atendimento hospitalar. Hoje, essas taxas tendem a declinar, e há boas evidências científicas de que a imunidade de rebanho já foi atingida em alguns estados.
Mas e a vacina?
No final das contas, podemos avaliar que os governadores e prefeitos, de um modo geral, agiram corretamente, ao menos com base nas informações disponíveis até o momento. Mas será que não teria sido melhor prolongar as medidas de distanciamento tomadas em meados de março, a fim de salvar mais vidas? No curto prazo, é óbvio que a resposta é "sim". Mas, no médio e longo prazos, a resposta depende de saber quando haverá uma vacina eficaz contra o covid-19 e quando essa vacina poderá ser aplicada de forma massiva no Brasil. Se a vacina vier logo, talvez cheguemos à conclusão de que poderíamos ter salvo muito mais gente sem causar tanto dano à economia quanto o que era esperado inicialmente. Mas, se a vacina demorar, poderá ficar claro que as decisões de governadores e prefeitos, mesmo tomadas com um olho nas urnas e outro no caixa, foram as melhores para combinar controle da pandemia com crescimento econômico, o qual também é vital para salvar vidas, uma vez que recessão também mata muito (aqui)
No reino das escolhas trágicas, não há estratégia boa; só estratégias menos ruins.
Postagens relacionadas