domingo, 18 de novembro de 2012

Quando a ciência dos livros didáticos é só preconceito

Uma das funções essenciais do ensino fundamental e médio é transmitir aos alunos um conhecimento introdutório sobre algumas teorias científicas acerca de fenômenos naturais e sociais. Daí ser importante selecionar teorias já devidamente provadas pelos métodos científicos para elaborar os conteúdos didáticos. No caso das ciências naturais, isso não representa um grande problema, ao menos nos dias atuais, porque as teorias são testadas exaustivamente por experiências controladas e por observações empíricas. Já no caso das ciências sociais, aí incluída a geografia humana, a questão é bem mais complicada. Na impossibilidade de validar objetivamente as teorias por meio de experimentos, e uma vez que as observações empíricas costumam deixar muitas dúvidas sobre quais são os fatores causais envolvidos na explicação de um fenômeno, bem como sobre a contribuição específica de cada fator, a validação acaba sendo feita pela formação de consensos entre os pesquisadores. 


Nesse contexto, não é incomum que convicções puramente ideológicas ou até preconceitos sejam responsáveis pela formação de consensos quanto à eficácia explicativa de determinadas teorias em ciências sociais, posto que as observações empíricas são, muitas vezes, insuficientes para tanto. Daí o perigo de elaborar livros didáticos que apresentam às crianças e adolescentes teorias que, mesmo quando bem aceitas pelos cientistas de certa época e país, não passam de convicções apriorísticas ou até preconceituosas travestidas de ciência. Um exemplo disso está no livro Pequena geographia da infancia, de Joaquim Maria de Lacerda (1930), usado nas então chamadas "escolas primárias". Algumas passagens desse livro ilustram à perfeição como preconceitos podem facilmente aparecer feito conhecimento científico comprovado:
Raças humanas - A totalidade dos homens forma uma unica especie, dividida em 5 raças principaes [...] A raça caucasea é de todas a mais intelligente, activa, civilizada e poderosa. [...] A raça amarella, que conta povos de uma civilisação muito antiga, como os Chinezes, mas que têm permanecido estacionarios, é incontestavelmente bem inferior à raça branca. [...] A raça negra, muito menos civilisada e intelligente que as duas primeiras, divide-se em dous grandes ramos: [...] A raça malaia, que mostra aptidões para a civilisação, fórma dous ramos distinctos: [...] A raça americana, que em outro tempo formou alguns imperios civilisados e poderosos e que se distingue por sua bravura, está dividida em dous ramos differentes: [...] (Lacerda, 1930, p. 13 - negrito no original). 
E essa obra não é um caso único. O livro Geografia geral, de Moisés Gicovate, embora sem hierarquizar as raças, atribui aos indivíduos características psicológicas que seriam determinadas racialmente, e de um modo que reproduz a visão segundo a qual os brancos pensam e os negros sentem. De fato, o autor afirma que a raça branca "é também denominada raça intelectual", que a raça amarela "também é chamada raça ativa" e que a raça negra é "também denominada raça afetiva" (Gicovate, 1944, p. 105-106 - itálicos no original).

Hoje, os cientistas sociais são unânimes em assegurar que passagens como essas não passam de ideologias racistas disfarçadas de conhecimento científico. Por seu turno, os educadores afirmam e repetem exaustivamente que o combate a todas as formas de preconceito e de discriminação constitui um dos objetivos essenciais do ensino, motivo pelo qual discursos desse tipo já não têm lugar em nossas escolas. Problema resolvido, então? Antes estivesse! A escola atual continua apresentando ideologias e discursos preconceituosos como se fossem conhecimento científico comprovado tanto quanto na época das obras citadas. A única diferença é que, se antes os livros didáticos divulgavam visões eurocêntricas e racistas, hoje as ideologias dominantes são anti-ocidentais e racialistas.

Já tratei desse assunto aqui, e voltarei a ele em novas postagens. Por ora, indico dois posts que revelam como os conteúdos dos livros didáticos contemporâneos são definidos com base em critérios ideológicos e apriorísticos, acabando assim por gerar novas formas de simplificação e de falsificação históricas.
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LACERDA, J. M. Pequena geographia da infancia. Revista e melhorada por Luiz Leopoldo Fernandes Pinheiro. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1930.

GICOVATE, M. Geografia geral. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1944.

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