domingo, 25 de agosto de 2013

Teoria do inconsciente é literatura?

A Federal ainda está em férias e, como costumo fazer nesses períodos, vou escrever um pouquinho sobre literatura e ciência. Começo então por me incluir entre aqueles leigos em psicanálise que são bastante céticos quanto à validade das teorias elaboradas por Freud e seus seguidores. Segundo Renato Mezan, um freudiano, embora cada indivíduo seja único, a teoria sobre a estrutura da personalidade - id, ego e superego - serviria como base para, mediante a análise dos discursos dos pacientes sobre si mesmos, descobrir as verdadeiras causas de seus problemas emocionais e comportamentos. Todavia, a comprovação dessa teoria sempre deixou muito a dever. A eficácia dos tratamentos psicanalíticos aplicados na solução de problemas comportamentais é para lá de questionável, e seus benefícios de longo prazo, reconhecidos pela neurociência, não parecem estar ligados à aplicação das teorias por parte do psicanalista, mas sim a alterações da química cerebral (que se dão lentamente) acarretadas pelo puro exercício de falar sobre si próprio.

Mas não pretendo avançar nessa discussão, e sim comentar um pequeno texto de Italo Calvino que revela o papel precursor da literatura na construção de um conceito de inconsciente e da teoria de que situações traumáticas vividas na infância podem levar a comportamentos doentios e acarretar sofrimentos no futuro. Trata-se da introdução que esse autor escreveu ao conto O homem de areia, de 1817, escrito por Ernst T. A. Hoffmann. Vejam só que interessante:
Este é o conto mais famoso de Hoffmann; foi a principal fonte da obra de Offenbach e inspirou um ensaio de Freud sobre o "estranho". Selecionar uma narrativa na vasta obra de Hoffmann é difícil; se opto por "Der Sandmann" não é para confirmar a escolha mais óbvia, mas porque este realmente me parece o conto mais representativo do maior autor fantástico do século XIX (1766-1822), o mais rico de sugestões e o mais forte em valor narrativo. A descoberta do inconsciente ocorre precisamente aqui, na literatura romântica fantástica, quase cem anos antes que lhe seja dada uma definição teórica.
Os pesadelos infantis de Natanael - que identifica o bicho-papão, evocado pela mãe para fazê-lo dormir, com a sinistra personagem do advogado Coppelius, amigo do pai, persuadindo-se de que ele é o ogro que arranca os olhos das criancinhas - continuam a acompanhá-lo na idade adulta (Calvino, 2004, p. 49).
Notem que Calvino parece ter um respeito muito grande pela teoria do inconsciente, a qual teria abordado cientificamente um fenômeno "descoberto" um século antes pela literatura romântica. Do meu lado, fico a perguntar se a teoria do inconsciente não seria apenas a conversão de uma ideia havia longo tempo presente no ambiente cultural europeu em hipótese científica para explicar o comportamento humano, hipótese essa que não se confirmou.

De todo modo, se alguém achar que deve ser muito forçado ver uma noção de inconsciente embutida nesse conto, recomendo que o leia. Eu até poderia reproduzir o restante da introdução de Calvino para dar mais amostras disso, mas resisto a fazê-lo porque esse texto comete um pecado muito comum em introduções: ao resumir a história para justificar a análise efetuada, acaba estragando boa parte do suspense! E isso é uma pena, pois o conto é extraordinário mesmo. Uma obra de literatura fantástica comparável ao melhor de Edgar Allan Poe.

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CALVINO, I. (org.). Contos fantásticos do século XIX: o fantástico visionário e o fantástico cotidiano. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Um comentário:

  1. Acho adorável a ideia de não desvencilhar ciência e literatura, como se fossem diametralmente opostas. Pelo contrário, penso que a literatura conseguiu, mais eficientemente que inúmeros relatórios de ciências sociais e humanas, reproduzir a condição humana, tão cheia de ambiguidades, ambivalências e não-finalidades. Ótimo post.

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