Conforme procuro demonstrar em artigos e livros publicados, as dificuldades teóricas dos intelectuais críticos não se resumem à necessidade de explicar a crise do socialismo real e o abortamento das expectativas revolucionárias, pois é preciso também responder como tem sido possível ao capitalismo, em contradição com as previsões dos teóricos radicais, combinar crescimento econômico, melhora das condições de vida e democracia. Diante dessas dificuldades, os intelectuais socialistas apelam para o tema do desenvolvimento desigual, e se dividem em dois grupos.
Os que se querem teóricos rigorosos e politicamente democráticos, como o marxista José de Souza Martins, simplesmente ignoram a questão de explicar o sucesso do capitalismo. Eles culpam esse sistema pela fome na África e pelo desemprego na Europa sem nem se darem ao trabalho de encarar o problema de responder porque as leis do movimento geral do capital e/ou do desenvolvimento capitalista haveriam de ser mais implacáveis com os africanos do que com os europeus, uma vez que o abismo que existe entre esses continentes, no tocante à desenvolvimento econômico, qualidade de vida e democracia, é gigantesco.
O segundo grupo de socialistas, muito bem representado por figuras como Milton Santos e Slavoj Zizek, é aquele que não tem pudor de passar por cima de qualquer debate científico que esteja além de seu alcance intelectual para poder pintar um quadro do capitalismo tenebroso o suficiente para justificar o caminho da violência na construção da utopia, como ações terroristas e ditaduras socialistas. Vejamos um pequeno trecho de uma entrevista dada por Zizek:
Todo mundo goza o fim da história do Fukuyama. Mas todos agem como se não houvesse alternativa à democracia parlamentar e ao liberalismo, mesmo nesses tempos de crise financeira. Vou mais além. Nunca, na história da humanidade, houve tanta gente comendo bem, morando bem e estudando bem, num ambiente laico, quanto o último meio século, na Europa e na América do Norte - mas à custa da exploração de bilhões de outras pessoas. É preciso levar isso em conta (Cf.: O Moisés da dialética).
Como é que Zizek prova que o bem-estar social vigente nos países desenvolvidos deriva da "exploração" de outros povos? Simplesmente não prova, assim como nenhum outro autor radical conseguiu provar até hoje. Durante a Guerra Fria, o contraste entre o fracasso socialista e os avanços sociais e políticos logrados sob o capitalismo fizeram com que o marxismo ocidental deixasse em segundo plano a teorização econômica para se dedicar à crítica cultural, conforme já lamentaram autores como Perry Anderson e Maria da Conceição Tavares. E é nessa mesma toada que Slavoj Zizek, um filósofo que se dedica à teorização cultural, seguiu ao longo de sua carreira. Se ele fosse um pensador rigoroso, tentaria resolver as contradições teóricas e fragilidades empíricas que desacreditaram as teorias das trocas desiguais elaboradas por marxistas nos anos 1960 e 1970. Como não dá muita bola para o rigor, prefere falar como se a exploração internacional fosse uma obviedade, e ponto final!
Não tenho dúvida de que, comparando-se os dois tipos de autores socialistas, o primeiro é muitíssimo melhor - ou menos ruim, fica ao gosto do freguês. Afinal, autores como Martins sabem que podem apelar para alguma teoria do intercâmbio desigual a fim de tentar provar que a pobreza da África nutre a afluência da Europa, mas silenciam por reconhecer que esse tipo de teoria, muito popular há algumas décadas, esbarra numa infinidade de problemas teóricos e empíricos (ver abaixo).
De qualquer modo, os dois grupos mencionados falham clamorosamente por usarem o desenvolvimento desigual como pretexto para seguir culpando a "lógica do capitalismo" por tudo o que acontece de mau no planeta sem fazerem um esforço para explicar as diferenças de desenvolvimento a partir de uma teoria geral (caso de Martins) e nem tentarem solucionar as pendências deixadas pelos teóricos do intercâmbio desigual décadas atrás (casos de Milton Santos e de Slavoj Zizek).
Só para concluir, indico um pequeno conjunto de textos antigos, publicados na revista Estudos, que apontam a incompatibilidade das teorias do intercâmbio desigual com a teoria marxista do valor.
- SCHOELLER, Wolfgang. Subdesenvolvimento e troca desigual no mercado mundial. São Paulo: Cebrap, Estudos, n. 22, s.d.
- GALVAN, Cesare G. Tecnologia, valor e troca desigual (retomando um artigo de Schoeller). São Paulo: Cebrap, Estudos, n. 25, s.d.
- CARDOSO, Fernando Henrique; SERRA, José. As desventuras da dialética da dependência. São Paulo: Cebrap, Estudos, n. 23, s.d.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu comentário foi enviado e está aguardando moderação.