quarta-feira, 13 de março de 2013

Capitalismo é a melhor solução para a fome, mas os marxistas não querem ver

A geografia tradicional é sempre muito acusada, inclusive pelos geocríticos, de ser puramente empirista, descritivista. Sendo assim, os geógrafos críticos, supostamente, deveriam interpretar as informações empíricas com base num referencial teórico-metodológico rigoroso, de maneira a elaborar e provar teorias científicas. Mas a realidade é bem outra. Tal qual a maioria dos marxistas, os geocríticos se enxergam como intelectuais militantes e, assim, procedem como os criacionistas: selecionam e produzem informações empíricas conforme for necessário para dar uma aparência de comprovação a teses estabelecidas de antemão pelo pesquisador (ver aqui).


A geografia rural e suas teses sobre o problema da fome exemplificam isso à perfeição, tal como já demonstrei em alguns trabalhos. Mas o mesmo ocorre em estudos sobre a cidade, conforme demonstra a dissertação de José R. S. Ribeiro Júnior, A fome e a miséria na alimentação: apontamentos para uma crítica da vida cotidiana a partir da geografia urbana (2008). O autor usa a economia política marxista para apresentar a tese de que o capitalismo produz necessariamente fome e faz um estudo sobre o município de São Paulo para demonstrar que o local de moradia dos mais pobres intensifica esse problema ao dificultar o acesso à compra de alimentos. Ao mesmo tempo, usa a conversa, própria dos teóricos marxistas e humanistas, de que a alimentação não deve ser encarada só do ponto de vista nutricional, mas também como parte de um contexto cultural e social muito mais amplo. Faz uma pesquisa de campo na qual entrevista pessoas que frequentam os Restaurantes Populares da Rede Bom Prato, do governo do estado de São Paulo, agentes de saúde que trabalham com pessoas pobres e moradores de uma área do bairro Grajaú, na periferia desse município.

A primeira falha escandalosa desse trabalho é que não utiliza as estatísticas sobre desnutrição produzidas pelo IBGE para comprovar que esse seria um problema persistente no Brasil ou, pelo menos, no município escolhido para a realização da pesquisa! Ora, anos antes da elaboração desse trabalho, a Pesquisa de Orçamentos Familiares 2002-2003 - POF, do IBGE, informava que a exposição à desnutrição era um problema de baixa magnitude na população adulta já em 1989, tendo se tornado meramente residual na primeira metade da década de 2000. E os dados da POF para o período 2008-2009 mostram que a exposição à desnutrição declinou ainda mais dali em diante, atingindo apenas um percentual baixíssimo de mulheres nas faixas de 20 a 24 anos de idade e acima de 75 anos. Somente no caso das crianças de até 5 anos havia um percentual significativo de exposição à desnutrição, mas restrita à região Norte do país. E as séries históricas demonstram sem sombra de dúvida que a frequência dos casos de atraso de crescimento e de baixo peso para a idade em crianças nessa faixa etária decaiu rapidamente desde 1975, sinalizando que o problema está no caminho de ser eliminado (IBGE, 2010).

Em suma, o capitalismo brasileiro praticamente extinguiu a desnutrição, mas o mestrado em tela nem sequer se deu ao trabalho de usar informações empíricas para apoiar a sua visão em contrário, derivada de pressupostos teóricos marxistas sobre o que seria a "lógica do capitalismo"!

Fracasso teórico e empírico

Bem, poderíamos tentar dar um desconto considerando que o autor não trabalha com o conceito clínico de desnutrição, como faz a POF, e sim com um conceito alternativo. Mas isso não seria desculpa, pois, se a teoria que dá suporte à dissertação afirma que o capitalismo não é capaz de atender às necessidades humanas, então é imperioso averiguar, antes de mais nada, se tal conclusão é válida para as necessidades mais básicas. E os dados citados acima provam que, quanto a isso, a teoria é falsa!

Ainda que a desculpa de usar um conceito alternativo servisse, as conclusões do trabalho não se sustentariam, e por uma simples razão: o autor não elabora nenhum conceito claro e operacional de fome com base no referencial teórico-metodológico marxista com o fim de, a partir daí, construir os instrumentos da pesquisa de campo! Usa alguns autores marxistas para tecer reflexões sobre a experiência da fome, sua dimensão social, cultural, etc., e cita o conceito de segurança alimentar e nutricional que consta no Projeto Fome Zero (Ribeiro Júnior, 2008, p. 74). Mas nem mesmo esse conceito - que já no Fome Zero é bastante vago - foi utilizado na elaboração do questionário da pesquisa! As entrevistas se basearam em perguntas abertas, feitas quase como em conversas informais - conforme o próprio autor reconhece (p. 147) - e nem sequer inquiriam diretamente as pessoas pobres sobre se passavam fome ou não, sob o pretexto de que isso as deixaria constrangidas. Se era assim, por que o autor não empregou a metodologia usada nas pesquisas sobre segurança alimentar? Essas pesquisas são enganadoras, já que tendem a superestimar o fenômeno da fome, mas ao menos apresentam uma metodologia usual para captar a percepção das pessoas sobre sua alimentação (ver aqui). 

Seja como for, o fato é que as entrevistas feitas por Ribeiro Júnior começavam com uma pergunta, feita "de maneira bem aberta e livre", sobre como era a alimentação da família. E o autor confessa que "de maneira geral os moradores respondiam que a alimentação deles era 'boa', ou 'sem problemas'" - sic (p. 158). Mas ele não se faz de rogado. Mais adiante, comenta que os entrevistados costumavam responder às demais perguntas dizendo que os locais onde compram comida ficam muito longe, que os finais de mês são "apertados" e que costuma faltar algumas coisas para comer em casa nesses períodos. Além disso, o autor lança dúvidas sobre a veracidade das respostas ao acrescentar suas próprias impressões subjetivas. Vemos isso quando ele comenta nunca ter visto frutas em cima das mesas das casas durante as entrevistas, que o fogão nunca estava aceso e que o número de cadeiras em volta das mesas sugeria que os membros das famílias não deviam costumar fazer as refeições todos juntos, com tudo o que isso implica em termos de sociabilidade. 

Ora, se ele queria avaliar a qualidade e variedade da alimentação dos entrevistados, por que não usou, por exemplo, a metodologia da POF de aferição da disponibilidade de alimentos dentro dos domicílios? Provavelmente porque, segundo essa pesquisa, a alimentação dos brasileiros, mesmo os de baixa renda, é variada e saudável. Melhor ficar com perguntas vagas, expor as respostas de forma superficial e relativizá-las com base nas impressões do pesquisador. Assim não tem como a pesquisa de campo contradizer a teoria! 

Concluindo

O trabalho é uma lástima tanto do ponto de vista teórico-metodológico quanto empírico. Vi somente uma qualidade nele, que é a coerência entre a intencionalidade anticapitalista do pesquisador e sua avaliação de políticas públicas. Ao contrário daqueles que começam com um diagnóstico crítico radical da realidade e terminam fazendo elogios ao PT que contradizem o próprio diagnóstico, Ribeiro Júnior prefere ser coerente com suas ideias marxistas, por mais simplistas que sejam. Afinal, ele deixa bem claro que o Fome Zero é incapaz de superar o problema da fome, já que este seria inerente à sociedade capitalista. Tudo o que o Fome Zero pode conseguir, segundo ele, é fazer a "administração da fome" (p. 76). Ser como Chico de Oliveira é menos ruim do que ser como Marilena Chaui...

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IBGE. Pesquisa de orçamentos familiares 2008-2009: antropometria e estado nutricional de crianças, adolescentes e adultos no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.

RIBEIRO JÚNIOR, J. R. S. A fome e a miséria na alimentação: apontamentos para uma crítica da vida cotidiana a partir da geografia urbana. São Paulo: Dissertação de Mestrado em Geografia Humana, FFLCH-USP, 2008.

5 comentários:

  1. A geografia crítica é useira e vezeira deste tipo de raciocínio, correto? Mudanças pontuais não seria m válidas se o objetivo não fosse a derrubada do sistema capitalista, como alegou Roberto Lobato Corrêa em um de seus livros (Espaço Urbano ou Região e Regionalização). O problema é que, enquanto se espera a revolução, os problemas continuam exatamente do mesmo tamanho.

    Gostei muito de conhecer seu blog, sentia falta de uma abordagem menos exaltada e mais factual da Geografia.

    Abs,

    Luiz Eduardo

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    1. Sim, é precisamente por isso que os intelectuais críticos são incapazes de fazer propostas de planejamento que sejam radicais e, ao mesmo tempo, tecnicamente consistentes. Se a única solução para todos os problemas for superar o capitalismo, o planejamento não poderá ser mais do que um mero paliativo enquanto a revolução não acontecer. Mas então, para que fazer planejamento? Daí que os intelectuais críticos se limitam a malhar sem piedade o que está sendo feito, mas sem propor nenhuma alternativa clara, ou então fazem propostas que só têm algum grau de detalhamento técnico porque, contrariando as teorias radicais, visam apenas ajustar interesses dentro da ordem capitalista mesmo. E o que a maioria deles faz é o seguinte: elabora diagnósticos radicais que servem para detonar os programas dos governos não-petistas, ao passo que os programas do PT, mesmo quando são meras continuações do que já vinha sendo feito por governos de outros partidos, recebem elogios contraditórios com os diagnósticos... Uma palhaçada!

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    2. O planejamento é uma atividade cheia de matizes e nuances, detalhes, idas e vindas. Não se subordina a teorias totalizantes - afinal, se o capitalismo acabar, planejar continuará sendo necessário - e nem à exploração partidária.

      Neste caso em questão, seria mais proveitoso mostrar como as sociedades não-capitalistas trabalham o problema da fome, equacionando uma possível solução para o futuro. Entretanto, talvez os dados concretos e a hipótese pré-concebida se choquem...o que é um risco inerente a qualquer pesquisa.

      Abs,

      Luiz Eduardo

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  2. Gostei muito do artigo e dos comentários acima. Cada vez que leio algo relacionado a geocrítica mais percebo que isso não tem ou pouco tem a ver com ciência, com a formação do profissional geógrafo e até com o caráter. Antes eu pensava que, ter lido e discutido pontos contra e a favor da geocrítica foram importantes para minha formação, hoje as vezes acho que foi uma perda de tempo, que um curso intensivo de ArcGIS, econometria, mecânica dos solos, psicologia do consumo ou mandarin agregaria muito mais para minha formação. Durante a graduação ainda comentávamos em roda de amigos o quanto éramos sortudos por estudar numa instituição(UFPR) e curso onde não havia uma corrente dominante alienadora, pelo contrário, existiam e existem expoentes de nível até mundial na geografia física e humana que produzem conteúdo original e de referência. E mesmo os que flertavam com o geocrítica não me pareciam militantes com a foice no bolso. Por outro lado, acompanho de longe os temas de eventos, encontros e semanas acadêmicas sempre ligadas ao conflito de classes, ao anticapitalismo e etc, salvo raríssimas exceções ligadas a licenciatura. "A Geocrítica é sedutora e perigosa", já disse um professor, parece que isso não mudou nem vai mudar tão cedo enquanto a juventude torna-se massa de manobra de fundamentalistas ditos intelectuais dessa corrente. Ok, é bacana estudar e entender a evolução do pensamento geográfico, inclusive (ou apesar) da geocrítica, mas seria mais importante superar essa fase, atentarmos as novas complexidades do mundo. Graças ao atoleiro epistemológico descrito no artigo, o geógrafo só perdeu campo de trabalho, credibilidade, oportunidade e visibilidade, salvo alguns que ganham dinheiro com a situação. Novamente, invoco as palavras do prof. Sylvio: "Geógrafo tem que matar um leão por dia".

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  3. O mais interessante em todas essas discussões é que os países onde mais se matou de fome - intencionalmente, inclusive, foram os países comunistas e socialistas. Com o tempo perdem-se em meio às suas teorias de economia planificada, e acabam por nivelar por baixo a qualidade de vida de suas populações. Exceção feita aos dirigentes, avessos ao capitalismo apenas na teoria. Ou Lula e Dilma trataram seus cânceres no SUS?

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