quarta-feira, 27 de março de 2013

Precisamos de um Denys Arcand para filmar as mazelas do Estado brasileiro

O canadense Denys Arcand é uma figura bem difícil de encontrar: um esquerdista que tem autocrítica! Já assisti a dois filmes desse diretor, roteirista e produtor de cinema, ambos com um forte componente autobiográfico, conforme ele esclarece em suas entrevistas. As duas obras fazem uma reflexão sobre o mundo contemporâneo que, mesmo sem abrir mão de uma perspectiva crítica do capitalismo, é muito sincera, e até comovente, ao desnudar as inúmeras frustrações da esquerda intelectual, seja nos campos teórico, político, profissional e até pessoal. 


O primeiro filme é O declínio do império americano, de 1986, no qual Arcand mostra que o sucesso do capitalismo em combinar desenvolvimento econômico, liberdade política e distribuição de renda esvaziou as apostas revolucionárias de superação desse sistema, tanto as de corte marxista, quanto as afinadas com os movimentos de maio de 68 - especialmente a dita "revolução sexual". Já o segundo filme, intitulado As invasões bárbaras, avança cerca de vinte anos na vida dos personagens para mostrar que as esquerdas revolucionárias não podem usar a crise do Estado do Bem-Estar Social para bradar que tinham razão em alguma coisa. A obra retrata o fracasso estrondoso da política de nacionalização do sistema de saúde canadense, bem como a acomodação de intelectuais de esquerda em estruturas estatais ineficientes, para mostrar que essa crise nada tem a ver com o dito "neoliberalismo". Muito pelo contrário, as causas dos problemas exibidos na tela residem precisamente nos vícios do Estado que os liberais denunciam, a saber:
  • Falta de foco: para cada necessidade existe um programa de governo destinado a atendê-la e um órgão estatal para executar o programa, gerando ineficiência. No filme, há uma agência do governo para dar apoio aos universitários canadenses que estudam em Roma...
  • Irracionalidade na aplicação de recursos. O filme mostra pacientes que ficavam deitados em macas nos corredores do hospital por falta de quartos, enquanto uma ala inteira, à espera de reforma, permanecia sem uso.
  • Excesso de burocracia, diretamente ligada à irracionalidade.
  • Corrupção. O filme mostra que, para contornar a burocracia do hospital, é preciso subornar a administração.
  • Corporativismo dos sindicatos. Funcionários do hospital roubam objetos pessoais dos pacientes (como um notebook) e são protegidos pelo sindicato - ou seria "máfia"?
  • Fracasso na promoção da igualdade: canadense rico viaja para os EUA a fim de se tratar num bom hospital privado, enquanto a classe média (caso de professores universitários) tem de ficar no Canadá e amargar um serviço público de saúde digno de país de Terceiro Mundo.
Enquanto isso, aqui no Terceiro Mundo, intelectuais, políticos e sindicalistas atribuem a crise do welfare state ao "neoliberalismo", que é acusado de desviar recursos públicos da área social para políticas econômicas necessárias à reestruturação produtiva e à globalização da economia! Não é isso o que se lê em Milton Santos e Marilena Chaui, por exemplo? De outro lado, Denys Arcand, mesmo sem deixar de ler o mundo pelas lentes dos valores e ideias de esquerda, tem honestidade intelectual suficiente para não apelar para essa explicação tão simples quanto mentirosa. 

Nós temos um Denys Arcand na política - estou me referindo a Fernando Gabeira. Mas cadê o diretor de cinema que vai ter coragem de fazer um filme para expôr as entranhas do padrão brasileiro de welfare state e revelar as hipocrisias da nossa intelectualidade de esquerda? E um que não precise de recursos de empresas estatais para fazer o filme, é claro.

6 comentários:

  1. Caramba Professor, fui procurar um artigo de geomarketing e lá pelas tantas eu caí neste blog e outras matérias/notícias faladas durante a graduação (vide sua posição sobre o material didático do Vesentini), que grata surpresa no meu dia. Nostalgia á parte, filme sem recurso da ANCINE não deve nossa querida Patrícia Pillar (filme que deu um ânimo ao cinema brasileiro nos primórdios dos 90'). Ademais, parabéns pelo espaço e conteúdo. Sucesso e boas energias nas empreitadas!

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    1. Muito obrigado pelo seu comentário, Djalma! Desejo-lhe também muito sucesso em suas pesquisas e no seu trabalho. Tudo de bom!

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  2. Já assistiu filmes de Sérgio Bianchi, de "Quanto vale ou é por quilo" e "Cronicamente inviável"? Não seria o caso do que procuras? Abraços e parabéns pelo blog.

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    1. Obrigado pelas dicas! Quando eu puder, vou atrás desses filmes.

      Abraços

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  3. Na verdade o filme retrata a falta de opção, critica verdades absolutas, "tanto que os alunos são pagos para visitar o prof no hospital". Assim pode-se dizer que trata de analisar uma sociedade pós moderna. Também é possível entender uma critica ao poder do dinheiro, individualismo, como para a hipocrisia da esquerda. Não dá querer fazer uma analogia com o Brasil, pois nosso país ainda nem chegou ao estado de bem estar, que dirá a pós modernidade. A esquerda ainda pode manter esse discurso, principalmente pq aqui existe vários problemas socioeconômicos que já foram resolvidos nos lugares representados pelo filme. Já o cronicamente inviável faz uma dura critica a elite brasileira.

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    1. Sim, é verdade que há uma crítica ao poder do dinheiro e ao individualismo no filme. Por isso mesmo eu escrevi que o autor não abriu mão de criticar o capitalismo com base nos valores e ideologias de esquerda. Quanto a dizer que se trata de uma sociedade pós-moderna, bem... não trabalho com essa categoria e nem vejo no filme o esforço de retratar o mundo atual como pós-moderno. As esquerdas pós-modernas substituíram a visão de luta de classes pela de um confronto entre os "dominantes" e os "dominados", sendo estes o conjunto dos trabalhadores e pobres em geral mais as minorias sociológicas, com destaque para estas últimas. Todavia, Arcand mostra que as esperanças revolucionárias fracassaram também ao apelarem para o conceito de revolução sexual e para o feminismo. Os personagens dizem isso textualmente, até.
      Agora, quando digo que esse filme é adequado para fazer uma analogia com o caso brasileiro, é por dois motivos: a) porque o Estado brasileiro tem todos os vícios retratados no filme, e até piorados - sobretudo no quesito corrupção, potencializada nos governos do PT; b) porque o Brasil tem, sim, um Estado do Bem-Estar. Quando usei no texto a expressão "padrão brasileiro de welfare state", estava me referindo a trabalhos da cientista política Sonia Miriam Draibe em que ela usa o conceito de "padrões de welfare" para analisar a experiência brasileira e internacional em políticas sociais. Assim, embora seja correto dizer que os serviços sociais brasileiros não são tão bons quanto os europeus, por exemplo, ainda assim é inequívoco que nós temos um Estado do Bem-Estar - e com características universalistas. No filme, o que vemos é que o sistema público de saúde canadense é tão ruim quanto o brasileiro. Ou até pior, visto que, no Brasil, temos bons hospitais privados, enquanto o Canadá nacionalizou todo o sistema de saúde. Portanto, nada melhor do que esse filme para mostrar que as críticas liberais welfare state fazem todo o sentido, enquanto as acusações da esquerda contra o "neoliberalismo" são completamente falsas.

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