Respondo agora à pergunta que fiz ao final do último post: o grande problema da geografia agrária brasileira é a dissolução das fronteiras entre ciência e militância político-ideológica. A demonstração disso está na resposta que enviei ao autor que criticou meu parecer (ver aqui), conforme segue.
Eu não me daria ao trabalho de escrever um comentário longo sobre um artigo sem ter lido ou refletido sobre ele. Eu poderia ter simplesmente assinalado os campos do formulário e rejeitado o artigo sem acrescentar nada, o que me daria muito menos trabalho do que aceitar sua publicação condicionada a algumas mudanças e depois explicar quais seriam elas. Se fiz comentários, foi em respeito aos autores e visando melhorar a qualidade dos artigos a serem publicados.
No comentário ao meu parecer, o autor afirma primeiramente que não era objetivo do artigo em questão demonstrar o número de camponeses existente no Brasil. Prova de que não entendeu o comentário que fiz ao artigo, posto que, ao solicitar a apresentação dos dados mencionados, meu objetivo não era cobrar que fosse feita a discussão de questões alheias aos objetivos propostos, mas apenas indicar a necessidade do artigo justificar sua relevância científica e corroborar suas conclusões. De fato, o conceito de “camponês” e sua aplicabilidade para o estudo do agro brasileiro são controversos, de modo que nenhum leitor é obrigado a aceitar aprioristicamente que esse conceito é o mais adequado para o estudo em questão. Quais são exatamente as características definidoras do campesinato? O artigo não as esclareceu. Os produtores investigados são representantes de um grupo social numeroso e presente em todo o território nacional ou um grupo localizado?
Essa fragilidade do artigo fica ainda mais clara no momento em que o autor afirma, no comentário ao meu parecer: “o que se pretende no texto é demonstrar que boa parcela dos camponeses brasileiros tem procurado fugir da integração com a indústria”. Mas como o autor pretende haver provado isso sem apresentar qualquer dado que demonstre que os produtores que ele pesquisou são representativos de um universo que abrange “boa parcela dos camponeses brasileiros”?
Além disso, logo no resumo do artigo está dito que se trata de uma “reflexão teórica a respeito da via contraditória de reprodução camponesa na sociedade capitalista de produção”. O autor supõe, portanto, que as reflexões teóricas do estudo de caso empreendido são generalizáveis para todo o mundo capitalista, mas não se dá ao trabalho de provar que tal generalização seria válida ao menos para o campo brasileiro! Isso ocorre porque o autor está imbuído da certeza cientificista de que os conceitos e teorias que usa são expressões diretas e incontestáveis da realidade, conforme deixa claro no momento em que afirma: “não sou eu quem está levantando essa hipótese de forma idealista, são eles, os camponeses que estão buscando alternativas para se reproduzirem no campo”. Mas quem disse que é apropriado qualificá-los como “camponeses”?
Paradoxalmente, esse cientificismo se combina com a crença, explicitada no artigo, de que “[...] a abordagem conceitual apesar de ser uma construção teórica, carrega em si um conteúdo político e ideológico. Utilizaremos o termo camponês para se referir aos agricultores familiares por trazer em si, historicamente, a questão do enfrentamento ao capital e reconhecimento do seu lugar no espaço social conflitivo das lutas de classes [...]”. Quer dizer, o autor tem certeza plena de que os conceitos e teorias em que se baseia são expressões inquestionáveis da realidade, mas admite que sua opção pelo uso do termo “camponês” é político-ideológica. Decerto por pensar que, se as teorias marxistas das quais se utiliza são representações incontestavelmente verdadeiras da realidade, o mesmo vale para as ideologias que derivam dessas teorias.
Não bastasse isso, o comentário do autor sobre meu parecer afirma que, se acaso eu li seu artigo na íntegra, o fiz “com juízo de valor”. Mas como ele pode cobrar que seu texto seja lido com isenção se afirma que todas as construções teóricas possuem conteúdos políticos e ideológicos, o que implica reconhecer que elas são também inerentes a juízos valorativos? Se eu tivesse redigido meu parecer orientado por juízos de valor, teria rejeitado o artigo pela forma como ele, com base em certos valores típicos da esquerda marxista, apoia pequenos produtores que atuam de forma ilegal com o argumento de que é justo desrespeitar a lei quando se trata de resistir à lógica do capitalismo (e mesmo que se trate de normas da vigilância sanitária?). Mas, ao invés de contrapor os meus valores àqueles expressos no artigo para rejeitar sua publicação, fiz uma análise de sua lógica interna e constatei que ele não esclarece adequadamente os critérios utilizados para definir os agentes sociais em foco como camponeses e nem apresentou evidências da relevância desse grupo social no contexto brasileiro. Daí que, ao invés de rejeitar o artigo, solicitei que esses problemas fossem resolvidos antes que ele fosse publicado.
Além disso, é estranho o autor dizer que eu não percebi que o artigo apresentava três paradigmas de explicação do campo brasileiro se, em meu parecer, ressaltei que o resumo feito sobre tais paradigmas estava correto. A referência que fiz ao uso dado pelo texto às ideias de Milton Santos tinha por objetivo mostrar que estas são inadequadas para demonstrar a pertinência do conceito de "camponês" utilizado no artigo, de modo que seria necessário incorporar as mudanças que sugeri para resolver essa deficiência.
Por fim, o autor afirma isto: "[...] é praticamente inacreditável que o parecerista em sua análise afirma que o conteúdo do artigo é pouco relevante para a geografia. Será que a luta diária desses camponeses para se reproduzirem no campo sob a égide da exploração capitalista personificada no capital industrial, comercial e financeiro, não é importante para a geografia?". Ora, a Geografia, como qualquer ciência, deve estar comprometida com a busca da verdade. Uma pesquisa é relevante para a Geografia se tiver a preocupação de produzir conhecimentos válidos e verdadeiros sobre a realidade socioespacial – e dizer isso não implica qualquer pretensão cientificista, já que as teorias são sempre questionáveis – e não por se alinhar com causas sociais e políticas consideradas justas à luz de determinada teoria ou ideologia. Nesse sentido, um artigo que reproduz afirmações sobejamente repetidas nos estudos da Geografia Agrária brasileira, que não apresenta claramente os critérios utilizados na definição de conceitos e nem evidências empíricas para corroborar suas conclusões não pode ser considerado de grande relevância. É um artigo de importância rotineira, na melhor das hipóteses.
Creio que o autor deveria rever essa associação esdrúxula de cientificismo com militância política presente na forma como produz suas pesquisas.
Muito bom!
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