sábado, 30 de março de 2013

Geografia escolar despreza a boa ideia de Yves Lacoste

No meio de tanta bobagem esquerdista que escreveu, o geógrafo Yves Lacoste (foto ao lado) brindou-nos com uma crítica bem pertinente à geografia regional clássica: a de que as "regiões" mapeadas por Vidal de La Blache e seus seguidores não eram entidades concretas, tal como eles acreditavam, mas apenas o resultado de um modo específico de dividir a superfície terrestre com base em certos critérios. Por isso, Lacoste acusava o estudo regional clássico de levar as pessoas a acreditar que há uma forma única de dividir o espaço em "regiões", quando o conceito de região é apenas uma "ferramenta de conhecimento" que o pesquisador usa para estudar a "espacialidade diferencial" de cada fenômeno. Seria preciso, então, trabalhar com diversas formas de regionalização do espaço, e explicitar bem a utilidade teórica e política de cada critério de divisão regional utilizado, para chegar a explicações de caráter científico da espacialidade diferencial e para orientar as atividades de planejamento (Lacoste, 1989).


Estou de pleno acordo com essas ideias, as quais, diga-se, já haviam sido formuladas muito antes, na sua maior parte, por Richard Hartshorne, meu clássico favorito (Diniz Filho, 2000). Mas, acompanhando estes dias alguns textos de geógrafos que nadam contra a corrente, chamou-me a atenção o fato de que a geografia escolar tem repetido o procedimento de apresentar determinadas regionalizações sem explicitar as funções teóricas e políticas a que estas servem. 


No texto As mentiras que os geógrafos contam para as crianças, Fernando R. F. de Lima analisa o livro didático usado por sua filha na escola:
Segundo os autores do livro, as Américas podem ser divididas segundo o critério histórico-cultural (anglo saxã e latina), econômico (desenvolvida, subdesenvolvida), segundo o sistema econômico (capitalista e socialista) ou ainda pela história da colonização (de povoamento ou de exploração). Obviamente, tratam-se de divisões "consagradas" no passado, mas que pouco tem a ver com a realidade atual. 
O critério de desenvolvimento adotado, por exemplo, é simplesmente a repetição das falácias repetidas há muitos anos. Não ocorre uma busca de uma classificação que considere algum indicador de referência como por exemplo o Índice de Desenvolvimento Humano, que colocaria no rol de países desenvolvidos os sulamericanos Chile e Argentina, porção sul e sudeste do Brasil além de vários países da América Central, como Costa Rica, Porto Rico e outros menores.
Por sua vez, Anselmo Heidrich faz o seguinte comentário sobre essa passagem do texto:
Agora imagine se os geógrafos utilizassem vários critérios para n-regionalizações, como não seria rica a possibilidade de aulas sob vários temas e sua dimensão espacial e de como esta pudesse influenciar o desenvolvimento dos próprios temas, causas e fatores de desenvolvimento em foco. P.ex., assim como é o caso do IDH poderíamos avaliar graus de segurança pública, jurídica, poluição em separado para demonstrar como estas variáveis evoluem, se correlacionam (ou não) etc. Mas, para tanto, a atualização deve ser uma busca constante e é muito mais fácil decorar um esquema preconcebido calcado nesta falaciosa teoria desenvolvimentista com acordes marxistas-leninistas que demonstrou acima. Dentre tantas críticas que se poderia fazer, como nos dias atuais, em plena época do agronegócio, da importância das commodities e da cadeia produtiva que se associam, se pode falar em países exportadores primários como se o alto desempenho disto não dependesse de uma indústria de insumos e infra-estrutura? (cf.: Falácias geográficas - 1)
Perfeito! Uma geografia escolar coerente com a crítica de Lacoste aos estudos clássicos deveria proceder exatamente dessa maneira. E aí reside a grande ironia. Os atuais livros didáticos seguem a pauta da geografia crítica, corrente que teve em Lacoste um dos seus pioneiros. Todavia, contradizem a concepção desse autor sobre a "espacialidade diferencial" dos fenômenos, já que utilizam certas teorias como critérios de regionalização do globo sem explicitá-las e sem dar ao aluno a chance de conhecer outras formas possíveis de regionalização, derivadas de outras fontes. E isso sem mencionar que, conforme visto nas passagens citadas, essas teorias marxistas e terceiro-mundistas já estão pra lá de surradas!

Postagens relacionadas:
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DINIZ FILHO. L. L. A dinâmica regional recente no Brasil: desconcentração seletiva com "internacionalização" da economia nacional. 2000. 254 f. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Departamento de Geografia , Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000. 

LACOSTE, Y. A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. 2. ed. Campinas: Papirus, 1989.

13 comentários:

  1. Olá Diniz, li o texto integral, e vi seu comentário logo abaixo. Tentei responder a ele ali mesmo, para não tirar do contexto e proporcionar também, quem sabe, uma resposta do próprio autor do texto. Mas não consegui publicar pois não tenho conta no google (nem quero fazer, já tenho muitas pra meu gosto, rs), portanto, o faço por aqui mesmo. Abraço e novamente parabéns pelo blog.
    Pedro
    Nesse caso não são os professores que contam as mentiras, mas sim os autores e editores dos livros didáticos. Vejam, não quero isentar os professores, mas no caso em questão o problema são os livros didáticos, o professor inclusive tem o poder de amenizar os danos. Quem escreve os livros didáticos e em quais condições? Quem os escolhe nas escolas ou, no caso, na escola da filha do autor, visto que em cada escola muda o processo de escolha, se é que ele existe (do ponto de vista do professor), especialmente no caso das particulares.? Existem livros que ensinam diferente disto, ou trata-se de um padrão quase universal dos nossos livros, evidenciando assim uma homogeneidade preocupante dos mesmos, frente à diversidade científica da geografia?? Essas são as questões pertinentes para esse artigo, e não uma suposta manipulação por parte de professores esquerdistas.

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    1. Na maior parte das vezes, quem escolhe os livros didáticos são os professores mesmos - no caso das escolas públicas, são sempre os professores que escolhem. Mas isso não quer dizer que todos os professores mentem deliberadamente. De fato, eles acreditam que as visões distorcidas que estão nos livros didáticos são a verdade!

      Como eu tenho dito em artigos científicos publicados, bem como em diversos posts deste blog, a geocrítica é hegemônica no Brasil, de sorte que suas teses são repetidas por todo mundo como se fossem verdades óbvias e indiscutíveis. Os professores transmitem imagens mentirosas do Brasil e do mundo acreditando que são verdadeiras!

      Ainda assim, devo dizer que há certos professores que mentem de forma deliberada, sim! Isso ocorre quando eles desdizem as coisas que afirmavam antes de o PT chegar ao poder para fazer de conta que as gestões petistas são coerentes com a história do partido. Como as criança e adolescentes não viveram aquela época, ficam pensando que o professor diz a verdade quando sugere que o PT sempre foi a favor de pagar a dívida externa...

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    2. Não concordo que na maior parte das vezes quem escolhe o livro é o professor. Isso não ocorre nem mesmo nas escolas públicas, onde, EM TESE, o professor escolhe 3 livros e o Estado escolhe o mais viável (barato). Mas na prática, nem isso acontece, mesmo esse processo, em que os livros são pré-selecionados pelo Estado e depois pelo professor, não costuma ocorrer assim. Nas particulares então nem se fala, a maioria já trabalha com seus livros e metodologias, às quais os professores se adaptam, quando não adotam sistemas de ensino apostilado. Nesses escolas, quanto mais conceituadas a tendência é maior, muitas vezes os professores nem tem muita opção de acreditar ou não nas visões distorcidas dos livros, simplesmente não podem descredibilizar o material didático que costuma ser um trunfo das escolas, suas supostas garantias de qualidade.
      Quem transmite imagens mentirosas do Brasil e do Mundo são os livros didáticos, os professores reproduzem o que lhes chega em mãos como material de trabalho com o aval do Estado, ou do diretor da escola particular. Os professores não deviam mesmo confiar muito nos livros, mas o fato é que são mal formados e essa desconfiança não é incentivada por ninguém, a começar pelo discurso dos livros, invariavelmente monológicos e peremptórios (você mesmo já fez observações interessantes a respeito da desatenção para a variedade de explicações). Por isso chamo atenção para a produção dos livros didáticos e sistemas de ensino, quem os faz e em quais condições? Quais as mudanças em relação aos anos 1960? Um começo necessário para esta discussão é descobrir qual livro a escola da filha do autor utiliza.
      O seu terceiro parágrafo eu concordo, mas não acho que sejam tantos os professores que defendem o PT tão abertamente.

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    3. Atribuir a escolha do livro ao diretor da escola é mostrar desconhecimento da realidade do ensino brasileiro, tanto privado quanto público. Os critérios de enviesamento, como bem disse o Diniz, começam muito antes, nas faculdades, sobretudo nas públicas, cujo comportamento e ideologias é mimetizado em todas as outras escolas. Normalmente quem escolhe o livro é o professor ou uma comissão de professores da área. No caso das grandes redes de colégio, normalmente existe uma coordenação que escolhe os livros, na maioria das vezes em parceria e por sugestão dos próprios professores. Questões de mercado também contam, mas diante do curriculum pautado pelo MEC e pelos vestibulares das melhores universidades, qual é a variabilidade existente nos livros didáticos? Cite um autor que fuja dos lugares comuns ensinados há décadas (sobretudo desde os anos 1980) nas escolas Brasil afora? A presença ideológica nas escolas é tão forte que os professores já nem sabe questioná-la. É como a presunção de que todos são cristãos num país como o Brasil, que vê de forma desconfiada aqueles que desviam desta norma.

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  2. É algo irônico, o ensino cartográfico deixa claro que existem várias formas de se mapear um espaço, de acordo com seu propósito. Por que a região não pode ser vista da mesma forma?

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    1. Muito boa a discussão. Mas, professora de Geografia há cerca de vinte e três anos, tenho sobrevivido às alternâncias de seu ensino, às dificuldades com os recursos e disponibilidades de livros didáticos, principalmente quanto à abrangência dos conceitos de escalas geográficas, mais especificamente para o Ensino Médio, quando buscamos resgatar os diversos teóricos da Geografia. Todos os comentários anteriores tem procedência, mas percebo que muitos autores de livros didáticos vem demonstrando certa preocupação com esta linha do pensamento geográfico proposto por geógrafos mais críticos e mais contextualizados. Quanto à autonomia para escolha do livro didático, podemos buscar construí-la, mesmo que seja degrau por degrau. É lógico que estou me posicionando enquanto professora da rede pública, apaixonada pela Geografia (e seu papel social a partir da escola).

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  3. Olá professor Diniz, venho acompanhado seu blog a algum tempo e tenho aprendido bastante. Inclusive o indiquei para que meus colegas também o leiam, pois serve de contraponto a visão hegemônica marxista na Geografia. Enfim, parabéns pelo trabalho.
    Gostaria de saber onde posso encontrar sua tese, pois a procuro e não consigo encontrar. Poderia enviar para mim?

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    1. Oi, Vinicius. Obrigado pelas palavras de incentivo. Quando eu defendi a tese, ainda não havia os arquivos digitais, então só é possível consultar as versões impressas na biblioteca da FFLCH-USP e da UFPR. Mas eu vou disponibilizar um link para você e outros leitores baixarem o arquivo digital. Eu já devia ter feito isso antes, aliás. Abs

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  4. OK professor. Aguardo ansiosamente. Abraços.

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    1. Olá, Vinicius. Já disponibilizei os links para a tese e a capa da tese na barra lateral do blog. Abraço

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  5. Aproveitando que estou por aqui, gostaria de saber se o senhor poderia me indicar uma lista de leitura de geógrafos brasileiros ou do exterior que fogem do discurso esquerdista ou que atacam esse discurso. Tenho aprendido bastante com o blog do senhor, mas gostaria de complementar esse aprendizado com uma literatura específica e mais aprofundada. Agradeço a atenção e aguardo ansiosamente. Abraços.

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    1. Olha, eu não conheço quase nada que seja assim na área de geografia econômica. Ou, pelo menos, quase nada que seja recente. Recomendo que você leia a tese de doutorado de Fernando Raphael Ferro de Lima, que eu orientei (existe em pdf). Também a dissertação de mestrado de Anselmo Heidrich, que discute geografia urbana à luz da teoria institucionalista. Fora isso, vale a pena a produção da geografia quantitativa, embora já seja bem antiga. Por exemplo, a coletânea de artigos organizada por Speridião Faissol que eu cito na minha tese. Abs

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