Em seu ataque demolidor à geografia de Vidal de La Blache, Yves Lacoste, um dos pioneiros na construção da geografia crítica ou radical, começa por acusar o anacronismo dos estudos desse autor. Segundo ele, o estudo regional lablacheano passava ao largo dos processos de industrialização e urbanização para se concentrarem na descrição de paisagens rurais.
De fato, essa era uma decorrência lógica da visão que La Blache tinha da ciência geográfica: se essa disciplina deveria ser uma "ciência de síntese", tratava-se então de estudar a integração de elementos naturais e humanos tal como eles se apresentavam nas paisagens. Isso levava necessariamente à valorização dos estudos sobre o espaço rural, onde a adaptação do homem às condições naturais era muito mais evidente e direta do que no meio urbano. Daí Lacoste constatar que "o 'homem vidaliano' não habita as cidades" (Lacoste, 1989, p. 61).
Ironicamente, a geografia crítica, embora navegando por águas bem diferentes, acabou desembarcando num agrarismo totalmente anacrônico. Não vou me deter agora em tratar dos diferentes significados que termos como "ruralismo" e "agrarismo" assumem em diferentes contextos discursivos. Neste texto, uso esse termo no mesmo sentido empregado por Xico Graziano (2004): agrarismo é uma ideologia que combina a idealização do modo de vida tradicional camponês, assentado na agricultura de subsistência, com a concepção de que a agricultura familiar seria um sistema produtivo mais eficiente do que o empresarial. Os dois elementos servem como justificativa para um projeto de reforma agrária fortemente distributivista, por meio do qual o sistema familiar se faria predominante no campo.
Assim, não surpreende ler o que a maioria dos geógrafos escreve sobre as relações campo-cidade. O dito "camponês" é "expulso" do campo por uma modernização agrícola "excludente" e, empobrecido, acaba indo residir em periferias urbanas desassistidas e com baixa oferta de empregos. Daí que a reforma agrária seria necessária para "manter o homem no campo", o que seria positivo também para evitar o "inchaço" das cidades e os consequentes problemas de congestionamento, poluição, favelização, etc.
Falando francamente, a geocrítica brasileira (exceção feita a uns poucos autores que ainda trabalham com a tese marxista-leninista da destruição do campesinato) é muito mais anacrônica do que a geografia lablacheana! De fato, Sandra Lencioni (1997) já ponderou que a crítica de Lacoste não enquadra devidamente o pensamento de La Blache em seu contexto histórico, posto que a maior parte da população da França ainda residia no campo há mais de um século, quando esse autor viveu. Nesse sentido, a crítica de Lacoste pode ser mais apropriada em referência aos seguidores de La Blache, que ainda por muito tempo insistiram na elaboração de estudos descritivos de regiões rurais numa Europa em processo de industrialização e urbanização. Mas o caso dos geocríticos é muito pior, já que toda essa discurseira contra a modernização agrícola, contra o êxodo rural e em favor de manter o homem no campo se dá em um contexto histórico em que tais processos estão consolidados e mostram-se irreversíveis.
Com efeito, se modernização agrícola e êxodo rural são ruins, como se explica o fato de que os indicadores sociais brasileiros melhoraram rapidamente nas décadas em que esses processos se deram? Já tratei de criticar visões assim tanto na academia quanto nos livros didáticos (ver indicações abaixo), e não vou me estender sobre isso agora. Resta-me então acrescentar umas poucas coisas. Primeiramente, qual é o país do mundo que logrou atingir altos níveis de desenvolvimento econômico e de qualidade de vida mantendo um elevado percentual de população no campo e uma mão de obra agrícola predominantemente familiar? Pelo contrário, os países mais atingidos pela miséria e pela fome são justamente aqueles em que a maior parte da população ainda é rural. E aqueles que vêm conseguindo tirar multidões da pobreza, China e Índia, estão fazendo isso por meio de processos acelerados de crescimento econômico, industrialização e urbanização, possíveis apenas no bojo de um intenso êxodo rural.
Se a geografia regional lablacheana era anacrônica, a geocrítica brasileira é verdadeiramente reacionária!
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GRAZIANO, X. O carma da terra no Brasil. São Paulo: A Girafa Editora, 2004.
LACOSTE, Y. A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. 2. ed. Campinas: Papirus, 1989.
LENCIONI, S. Região e Geografia: uma introdução ao estudo da noção de região. Tese de Doutorado, Departamento de Geografia da FFLCH-USP, 1997.
Caro Professor,
ResponderExcluirALVES, F. D. & FERREIRA, E. R., no artigo "Panorama metodológico na geografia rural: apontamentos para a história do pensamento geográfico", citam Diniz (Geografia da Agricultura, 1994), onde este autor fala de uma dicotomia entre uma Geografia Agrária, qualitativa, e uma outra Geografia Agrícola (quantitativa). No entanto, esse mesmo autor fala que essas duas vertentes podem conviver pacificamente. Eles citam:
"O autor vê de forma benéfica essa multiplicidade teórica [as
tendências atuais na Geografia são variadas, o que é bastante útil ao desenvolvimento da ciência] (1984, p.52). Porém, afirma que a geografia nova e a radical assumem posturas bem distintas, mas não antagônicas". [...] Portanto, as diferentes escolas do pensamento geográfico diferem de alguns pontos e características, mas podem coincidir em alguns meterias e técnicas (que compreende uma metodologia).
Eu concordo com esse ponto de vista do Prof. Diniz, muito embora reconheça haver uma preponderância da Geografia Agrária em nossas escolas. Isso acaba por tolher o interesse pelo desenvolvimento de uma Geografia Agrícola, transferindo, salvo raras exceções, esse esforço técnico e acadêmico para outras áreas profissionais, como a Economia e seus centros de pesquisa.
Eu até já pensei em escrever algo sobre o desenvolvimento social observado em áreas de expansão da fronteira agrícola, notadamente as regiões do MAPITO - MATOPIBA. Seria uma forma de contrabalançar a ideia que impera, de que a agricultura comercial só trás pobreza, concentração de renda, impactos ambientais, etc.
Referência: http://www.rc.unesp.br/igce/simpgeo/885-895flamarion.pdf
É certo que as abordagens neopositivistas e marxistas podem convergir no uso de "alguns materiais e técnicas", mas são realmente antagônicas nos pressupostos teóricos e metodológicos que utilizam e também nas suas conclusões quanto aos efeitos sociais do desenvolvimento da agricultura sob o capitalismo.
ExcluirUma evidência desse antagonismo está exatamente no seu comentário de que o predomínio da geocrítica acaba tolhendo o interesse em pesquisar geografia agrícola: ele mostra que as duas quase não se comunicam, pois privilegiam temas de pesquisa muito distintos.
Outra evidência é que as propostas de políticas públicas que derivam de cada abordagem são antagônicas. A maioria dos geocríticos defende uma reforma agrária ampla, rápida e massiva por ser essa uma decorrência lógica dos métodos e teorias de que se utilizam, mas o mesmo não ocorre com aqueles que têm uma visão positiva dos efeitos sociológicos do funcionamento do mercado. Por fim, vale notar que os geocríticos são os primeiros a sustentar o antagonismo entre as duas abordagens, já que eles qualificam os discursos não baseados na geocrítica como ideologias a serviço do capitalismo.
Mas estou pleno acordo quanto ao fato de que o predomínio da geocrítica afastou os geógrafos do estudo da geografia agrícola e que esse espaço vem sendo ocupado por profissionais de outras áreas. Hoje, quem trata da distribuição geográfica das produções agropecuárias e da lógica que a explica são os economistas!
E, enquanto esse campo é ocupado por outros profissionais, os geógrafos vão para as escolas contar mentiras para as crianças e adolescentes, como ocorre quando dizem que a maior parte das terras agricultáveis são improdutivas, que o agronegócio só produz para exportar, etc.