domingo, 3 de fevereiro de 2013

Sobre "Egoísmo racional: o individualismo de Ayn Rand"

Faz um tempo que estou para comentar o livro Egoísmo racional: o individualismo de Ayn Rand, do economista Rodrigo Constantino (Documenta Histórica, 2007). O autor faz um resumo introdutório da obra dessa novelista russa que se celebrizou pela defesa apaixonada de ideias liberais, mas, logo no início, adverte que o livro representa as ideias dele, "não necessariamente em total acordo com o que Ayn Rand pensaria". O problema é que Constantino não explica, ao longo do livro, quais passagens podem estar em desacordo parcial com Rand, de sorte que o leitor fica na dúvida se as concordâncias ou discordâncias que ele tiver em relação ao conteúdo se referem ao pensamento do autor ou das obras que ele resume e comenta. 


Isso, por outro lado, reforça o convite que Constantino faz à leitura das obras originais de Ayn Rand, que não podem ser substituídas por uma introdução. Além do mais, o principal é ter claro que esse livro traz uma contribuição relevante aos debates públicos por divulgar essas ideias liberais num país onde, à semelhança de toda a América Latina, confia-se no Estado, nunca no indivíduo.

Sobre o conteúdo, creio que a parte menos interessante são as primeiras 35 páginas, que trazem a fundamentação filosófica dos escritos de Rand. Ocorre que Ayn Rand não era uma filósofa, mas, como diz o próprio Constantino, uma novelista que buscou elaborar um pensamento filosófico que servisse de base para a construção de seus personagens heroicos. O resultado disso é que o seu "objetivismo" se vale de conceitos extremamente polêmicos dentro da filosofia, mas a autora, ao menos nessa síntese que Constantino nos apresenta, não parece ter efetuado uma revisão aprofundada da literatura pertinente ao assunto. 

Toda construção filosófica verdadeira é assim. Como poderia Kant ter formulado a sua teoria do conhecimento a não ser por meio de uma exaustiva discussão com os filósofos empiristas e racionalistas sobre os conceitos de espaço, tempo, razão e tantos outros, conforme lemos em sua Crítica da razão pura? Rand, porém, usa o conceito de razão para se contrapor ao pensamento que ela denomina "místico", o qual nega a existência da realidade objetiva e apela para verdades reveladas pela fé ou pelos sentimentos. No âmbito desse debate restrito, fica fácil concordar com ela, mas não é possível levar adiante qualquer discussão filosófica ou epistemológica aprofundada em se partindo da proposta "objetivista" de Rand, posto que ela não debateu os conceitos de que se utilizou com os filósofos que já haviam tratado antes de teoria do conhecimento, metafísica, e assim por diante. 

Nesse sentido, não surpreende que ela utilize conceitos de uma maneira que soa ingênua. Ela fala de realidade, mas essa noção não é útil para as ciências da natureza (só atrapalha, na verdade), e tem muito pouco uso para as ciências sociais. A epistemologia que ela propõe também se alinha indisfarçavelmente ao realismo filosófico, o qual supõe que, na observação, os conceitos se ajustam de fato aos objetos. Essa é uma tradição de pensamento que vai de Aristóteles até Augusto Comte, mas foi questionada já em Descartes, que inaugura o idealismo ao indagar até que ponto não são os objetos de conhecimento que se ajustam aos conceitos.

Por tudo isso, o livro de Constantino se torna mais interessante depois dessa exposição inicial sobre as considerações filosóficas de Ayn Rand. É quando ela afirma a busca pela felicidade individual como um valor central e arma suas críticas contra todos os inimigos do individualismo. Vemos então a inegável lucidez das críticas contundentes que essa escritora lançou contra o coletivismo em suas formas socialista, nacionalista e religiosa, bem como a pertinência de sua exposição a respeito das vantagens da economia de mercado e da democracia sobre todas as formas culturais e modelos políticos e econômicos que submetem os indivíduos ao arbítrio do Estado ou de grupos.

Em outro momento, farei novas considerações sobre essa segunda parte do livro. Por hora, quero apenas enfatizar que esse livro tem o mérito de fazer a divulgação de ideias que nunca tiveram muita força nos países latino-americanos, onde a direita e a esquerda sempre desconfiaram do indivíduo e idolatraram o Estado. Não é à toa que a história política do continente seja uma alternância de ditaduras baseadas em coletivismos de tipo nacionalista, à direita, e socialista, à esquerda.

5 comentários:

  1. Diniz,

    Esta autora aí tem um grande valor para países como o Brasil de hoje, sua saga contra o coletivismo é louvável. MAS, em se tratando de filosofia, ela deixa muitas brechas, principalmente por tentar reduzir a ação humana a uma mera ação econômica e esta não está livre de percepções morais e da cultura como um todo. Há também entre os chamados 'randianos' uma certa falta de clareza o objetividade(!) no que se refere ao conceito das palavras, como é a questão do próprio egoísmo. Ora, se o egoísmo tem sua racionalidade, o que ela propôs chamar de "egoísmo racional" é totalmente redundante. E tentar levantar um véu semântico para justificá-la, como fazem muitos de seus adeptos, não adianta, pois dizer tudo que tem a ver com o Eu é fruto do egoísmo confunde este com o egocentrismo. Ademais, se hoje vivemos uma guerra cultural contra o coletivismo, em particular na sua forma estatista, isto não exime que atores individuais possam, de livre e espontânea vontade agir altruisticamente. O que me incomoda demais na autora é esta filosofia simplista de lógica binária, na qual ou eu sou "do bem", um "egoísta racional" ou eu sou "malvadão", um coletivista que quer obrigar todos a um altruísmo forçado e falso. Ora, como indivíduo, sobretudo se eu for bem sucedido economicamente, nada me impede, sem que eu tenha sido obrigado para tanto partir para ações voluntárias (se me permite a redundância...) e ajudar os demais. Veja... O trânsito serve como analogia: se formos totalmente egoístas em um dia de chuva com semáforos pifados e não cedermos a vez para ninguém, o "sistema não anda". Da mesma forma, se formos completamente altruístas e cedermos sempre, nossa fila é que não andará prejudicando todo o sistema de tráfego também. Claro que esta é uma analogia igualmente simplista para caracterizar todos os sistemas sociais, mas o que se percebe é que a filosofia de Ayn Rand é tão simplista que até com uma analogia destas é possível contestá-la de modo, pelo menos para mim, bastante eficaz.

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    1. No exemplo, sua atitude seria deixar que os outros passem e esperar a sua oportunidade para passar, o que seria uma atitude racional e egoísta uma vez que a paciência nessa situação lhe favoreceria.

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  2. Esta semana que antecede o feriado está meio corrida, mas arrumei um tempo para ver os comentários. De fato, a minha percepção das ideias dessa autora vai na mesma linha: as conclusões dela são muito corretas, mas a construção "filosófica" que lhes dá base é questionável. Nesse sentido, é possível defender as ideias que ela defende mesmo sem usar conceitos como os de "egoísmo racional" e "objetivismo", entre outros. Afinal, a Constituição dos Estados Unidos já diz textualmente que o objetivo das leis deve ser o de garantir a cada cidadão a liberdade de buscar sua felicidade individual.

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