segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Pandemia: políticos agem com um olho nas urnas e outro no caixa do governo

No começo de maio e no começo de junho de 2020, as redes sociais reverberaram a perplexidade de muita gente com o fato de os estados terem adotado medidas de controle da pandemia mais restritivas  em meados de março, quando os números de casos e de mortes eram pequenos, e relaxado tais medidas justo quando esses números estavam mais altos do que nunca. Domingos Alves, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto, afirmou: "O Brasil é o único país que abriu [a economia] com aumento de casos e óbitos" (aqui). Apesar disso, não é difícil entender por que isso foi feito quando nos lembramos de que o homem reage a incentivos e, no caso dos políticos, isso implica agir com um olho nas urnas e outro nas restrições de caixa.

Vejamos: Bolsonaro recebeu o Estado falido pela incompetência e retardamento ideológico do governo Dilma. Logo, sabia que as medidas de distanciamento iriam derrubar drasticamente a arrecadação fiscal e que os investimentos em saúde e assistência social teriam de ser ampliados. Isso agravaria ainda mais a crise fiscal do Estado, cujas despesas já superavam em muito a arrecadação, e de forma crescente, desde o governo petista. De outro lado, os governadores sabiam que a situação fiscal de seus estados também estava bastante comprometida (sobretudo por conta dos gastos previdenciários), mas também tinham em mente três coisas:
  1. que a impopularidade causada por crises econômicas sempre atinge com intensidade o governo federal, mas não os governos locais;
  2. que poderiam pedir ajuda financeira para o governo federal (como sempre!) a fim de amenizar os efeitos das medidas de distanciamento;
  3. que várias pesquisas de opinião pública mostraram que a maior parte da população desejava a execução de medidas duras para barrar a pandemia, como o lockdown;
Não surpreende, portanto, que as primeiras medidas de distanciamento social tenham sido tomadas em meados de março: os governadores atenderam ao apelo popular, e os bolsonaristas mais empedernidos apoiaram as provocações e críticas do presidente contra as medidas. Em 27 de maio, uma pesquisa do Datafolha mostrava resultados interessantes: 60% dos entrevistados achavam que seria recomendável um lockdown e 36% eram contra, mas, ao mesmo tempo, a adesão às medidas de distanciamento havia caído um pouco desde um mês antes (aqui). Apesar disso, a arrecadação do ICMS já havia despencado, e os governadores sabiam que a ajuda do governo federal não seria suficiente para manter a capacidade de gasto dos estados por muito tempo. Chegaria a hora em que seria inviável continuar pagando os salários do funcionalismo, entre outras despesas mandatórias. E, se existe uma coisa sacrossanta no Brasil, são os salários e privilégios do funcionalismo público...

Assim, Doria e outros governadores contrariaram a maioria da opinião pública e abrandaram as medidas que, desde o início, eram mais brandas do que o recomendado por muitos epidemiologistas. O resultado foi que, depois de uma fortíssima queda da atividade econômica no mês de abril, houve leve crescimento nos meses de maio e junho, em comparação com abril (aqui).

Isso não significa, é claro, que os governadores e prefeitos ignoraram completamente a necessidade de controlar a pandemia. Afinal, se o número de casos explodisse, superando a capacidade de atendimento dos sistemas de saúde, o número de mortes poderia disparar, e os noticiários mostrariam cenas dramáticas de gente morrendo por falta de leitos e de UTI, o que poderia ter efeitos muito danosos para a imagem pública desses governantes. Portanto, governadores e prefeitos montaram equipes de especialistas para monitorar os números de casos, de óbitos, capacidade de atendimento hospitalar e de demanda por serviços médicos com o fim de abrandar as medidas de distanciamento tanto quanto possível sem, entretanto, ocasionar o colapso dos sistemas de saúde.

E não há como negar que essas medidas atingiram o objetivo. Contrariando especialistas que afirmaram que poderia haver "rebote" do número de casos e de mortes, vimos que a taxa de contágio diminuiu de junho em diante, de sorte que as curvas do número diário de casos e do número diário de óbitos permaneceram "achatadas", preservando a capacidade de atendimento hospitalar. Hoje, essas taxas tendem a declinar, e há boas evidências científicas de que a imunidade de rebanho já foi atingida em alguns estados.

Mas e a vacina?

No final das contas, podemos avaliar que os governadores e prefeitos, de um modo geral, agiram corretamente, ao menos com base nas informações disponíveis até o momento. Mas será que não teria sido melhor prolongar as medidas de distanciamento tomadas em meados de março, a fim de salvar mais vidas? No curto prazo, é óbvio que a resposta é "sim". Mas, no médio e longo prazos, a resposta depende de saber quando haverá uma vacina eficaz contra o covid-19 e quando essa vacina poderá ser aplicada de forma massiva no Brasil. Se a vacina vier logo, talvez cheguemos à conclusão de que poderíamos ter salvo muito mais gente sem causar tanto dano à economia quanto o que era esperado inicialmente. Mas, se a vacina demorar, poderá ficar claro que as decisões de governadores e prefeitos, mesmo tomadas com um olho nas urnas e outro no caixa, foram as melhores para combinar controle da pandemia com crescimento econômico, o qual também é vital para salvar vidas, uma vez que recessão também mata muito (aqui)

No reino das escolhas trágicas, não há estratégia boa; só estratégias menos ruins.

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2 comentários:

  1. Mesmo não sendo o foco do seu post, a seguinte frase me deu um estalo: "Chegaria a hora em que seria inviável continuar pagando os salários do funcionalismo, entre outras despesas mandatórias. E, se existe uma coisa sacrossanta no Brasil, são os salários e privilégios do funcionalismo público...". Confesso que já há algum tempo que não acesso seu blog e não saberia dizer se comentou algo sobre esses "privilégios do funcionalismo público" recentemente. Minha questão é se lhe parece conveniente um post apontando quais são, na sua opinião, esses privilégios? Isso poderia ser exemplificado com as carreiras específicas que os recebem? Por fim, qual a sua visão acerca da recente Reforma Administrativa encaminhada em agosto (se não me falha a memória) pelo Governo ao Congresso - a manutenção das atuais regras para as "carreiras de Estado" e não outras carreiras de áreas essenciais, etc?

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  2. As categorias mais privilegiadas são as do judiciário, legislativo e da carreira militar, conforme é bastante noticiado. Mas os funcionários do executivo também são privilegiados. O maior e mais injusto privilégio do funcionalismo brasileiro é o sistema de previdência diferenciado, o qual beneficia todas as categorias. Já publiquei alguns posts sobre a reforma da previdência, nos quais apresento dados sobre isso. Os sindicatos do funcionalismo tentam rebater essa acusação dizendo que as reformas feitas pelo Lula e pela Dilma, em 2003 e 2014, acabaram com o benefício da integralidade, mas se "esquecem" de que, como as reformas não têm efeito retroativo, todos os funcionários contratados antes de 2003 continuam gozando do privilégio de se aposentar recebendo o valor integral do último contracheque - é o meu caso, por exemplo. Logo, o privilégio ainda não foi corrigido, pois todos os funcionários aposentados de 2003 para cá continuaram usufruindo dele, e assim continuará sendo por uns bons anos. Além disso, mesmo funcionários de estatais gozam de privilégios que os trabalhadores da iniciativa privada não têm. Recentemente, a Veja publicou uma matéria que listava os benefícios trabalhistas recebidos pelos funcionários dos Correios, os quais os trabalhadores da iniciativa privada não recebem. Sobre a reforma administrativa proposta recentemente, confesso que li pouco a respeito, mas, pelo que li, não vejo com bons olhos. A ideia em si é correta: demitir o funcionário que não se dedica. Mas, num país onde o Estado é gerido de forma patrimonialista, conforme já foi analisado por muitos estudos, uma mudança dessas pode agravar os problemas do aparelhamento do Estado, das perseguições políticas e do apadrinhamento. Ora, se o PT já fez um aparelhamento de Estado de proporções inéditas mesmo sem poder demitir funcionários antigos para abrir espaço para os "companheiros", imagine se houver um dispositivo legal que permita demitir funcionários! A estabilidade na carreira pode ser bem menos ruim.

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