terça-feira, 2 de abril de 2013

Arrogância dos professores

Se um professor do ensino fundamental e médio ler a minha tese e argumentar contra as conclusões que estão ali, eu jamais vou responder: "como alguém que nunca fez nem mestrado pode questionar um trabalho de pesquisa em nível de doutorado? Continue na sua sala de aula, gritando com adolescentes espinhentos, e deixe a pesquisa científica para quem entende do assunto". E eu não responderia assim porque isso implicaria lançar mão de um artifício retórico tão odioso quanto rotineiro, que é o argumento de autoridade. Mas os professores do ensino médio não hesitam em desqualificar argumentos desse modo, conforme exemplifica um comentário ao post Vesentini entregou o jogo sem querer, o qual reproduzo abaixo:
O problemas dessas analises, é que os doutores como vc, nunca entraram numa sala de aula,( ensino básico) não conhecem o dinamismo que é ensinar, fazer uma transposição didática. Está visão de que os professores do ensino básico são adeptos da geo critica e seguem a risca o material de apoio ( livros didáticos) está totalmente equivocada. Devia concentrar mais atenção p área acadêmica, pois é aí que se concentra a maior parte dos recursos, nessas pesquisas que ninguém lê e de pouca utilidade prática, deixa a analise do ensino básico p quem conhece.
Supor que docente de universidade não precisa fazer transposições didáticas pode ser válido quando se fala de instituições como Harvard, mas, em se tratando do Brasil, é uma grande tolice. Sobretudo quando se trata de disciplinas como Epistemologia, a transposição é fundamental, dada a complexidade do assunto. E o que há de "dinamismo" no ensino médio e fundamental que não existe na universidade? O autor do comentário usa palavras que supostamente escondem uma grande profundidade de conhecimentos e experiências para afetar a autoridade com a qual busca desqualificar argumentos sem discutir.

Mas eu nem me preocuparia em responder ao comentário se ele não fosse sintomático de um comportamento bastante comum entre os professores e pedagogos brasileiros. Conforme já assinalou Gustavo Ioschpe, com base em enquetes realizadas com professores, existe uma percepção bastante difundida entre eles de que o nível de aprendizado atingido pelos seus alunos é insuficiente e, sendo assim: 
Esses professores criaram uma leitura de mundo à parte e completa para se blindarem contra o próprio insucesso. Qualquer crítica ou cobrança só pode vir de algum celerado que pretende privatizar a escola ou quer "alienar" o alunado. Pesquisas não são confiáveis, números mentem, estatísticas desumanizam: os professores não precisam de ajuda, muito menos de interferência. Segundo eles, o exercício da docência é algo tão particular, hermético e incompreensível que não pode se sujeitar aos métodos investigativos que analisam todas as outras áreas do conhecimento humano: só quem vive a mesma situação é que pode falar alguma coisa.
O comentário em questão mostra que tem gente tão bitolada nesse tipo de argumento de autoridade que faz uso dele mesmo quando discute com quem também é professor!

Geocrítica pauta o conteúdo escolar, sim!
Quanto à conversa de que os professores não seguem as ideias da geocrítica e usam os livros didáticos só como material de apoio, digo apenas que já rebati tais alegações no post Sim, a escola varre as milhões de vítimas do socialismo para debaixo do tapete! E minhas refutações estavam baseadas numa pesquisa que realizei com os alunos de ensino médio de Curitiba para aferir a influência da geocrítica nos conteúdos ensinados. Ao contrário do autor do comentário, eu não faço afirmações gratuitas baseadas numa experiência profissional supostamente incomunicável e incompreensível para quem está de fora.

Da utilidade do conhecimento
Quando o autor do comentário diz "Devia concentrar mais atenção p área acadêmica, pois é aí que se concentra a maior parte dos recursos, nessas pesquisas que ninguém lê e de pouca utilidade prática [...]", não percebe a incoerência em que acaba caindo. Afinal, as aulas de geografia do ensino médio tratam dos mesmos assuntos investigados "nessas pesquisas" que ele despreza! A minha tese de doutorado, por exemplo, trata das desigualdades econômicas regionais brasileiras, e esse tipo de conteúdo é ensinado nas escolas. No Departamento em que eu trabalho, os professores da área de geografia humana fizeram mestrados e doutorados em geografia econômica, política, rural, cultural... temas que estão presentes em todos os livros didáticos. 

Se os assuntos tratados nas pesquisas universitárias devem ser descartados por terem pouca "utilidade prática", então os alunos de ensino médio devem ter razão quando dizem que "geografia não serve pra nada", não é verdade?

Encerrando
Tudo isso não quer dizer que eu culpo o conjunto dos professores pela má qualidade do ensino brasileiro, pois não há dúvida de que existem muitos bons professores cujo trabalho não tem sido reconhecido pelo sistema escolar. Também não desconheço que os pais dos alunos têm grande parcela de culpa, já que não cobram resultados dos filhos e nem apoiam os professores quando estes são prejudicados em seu trabalho - além de desrespeitados - pela indisciplina dos alunos. Sou a favor de melhorar a remuneração dos professores, em todos os níveis, por meio de políticas de bonificações. E eu não discordo do fato de que o nosso Estado gasta demais com as universidades. Daí que as críticas que faço aos sindicatos dos professores do ensino médio e fundamental são as mesmas que dirijo às associações de professores universitários - às quais nem sou filiado, por sinal. Ver, por exemplo, os posts indicados abaixo:

6 comentários:

  1. Tem um autor, que não me lembro o nome, tinha doutorado, lecionava alguma matéria da área pedagógica para professores do ensino básico, ele era muito criticado nas aulas, os prof do ensino básico tinham bastante resistência com as teorias acadêmicas do doutor em ensino, até que ele resolveu sair do pedestal e foi lecionar no ensino básico. Esse professor tem um artigo relatando essa vivencia como professor na periferia, ele descreve como mudou algumas ideias e acabou por dar razão aos professores com suas experiência em sala. Já que vc cita tanto a veja, a folha e outros jornais imparciais, devia ter lido as páginas amarelas da semana passada, em que o autor entre outras criticas, diz: "Os estudantes de mestrado e doutorado vivem em uma zona de conforto, eles não ambicionam nada de muito extraordinário fora da curva, e vão sobrevivendo à base de um artigo por ano em revistas de baixa relevância. Fala de aluno, mas serve p muito professor também. Seus argumento me lembram também de um professor que conheci, não deu conta de trabalhar com alunos da escola pública e foi fazer mestrado, saiu todo marrento, criticando a escola, esse é mais um que logo estará escrevendo como vc, ou seja, não conhece, não deu conta e por ter dr ou mestrado poderá estar num futuro escrevendo bobagens sobre o ensino. Já que vc é tão liberal, devia escrever algo sobre a privatização da federal, acabar com a estabilidade, cobrar mensalidade entre outros. O que me preocupa em seus discursos, é o fato de vc querer analisar as questões com uma visão de economista ou algumas vezes de gestor administrativo, pensando em metas, resultados etc, só que ao fazer isso acaba por perder a riqueza da geografia, que é olhar além de números, questões sociais, ambientais, culturais e políticas.

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    1. No post "Vesentini entregou o jogo sem querer" eu mostrei, com base num texto desse autor, que a geocrítica escolar é dogmática e contraditória. Ao invés de tecer um contra-argumento, o Anônimo que eu contestei neste post veio com o surrado argumento da autoridade. Você faz a mesma coisa.

      De fato, essas pessoas que você diz que lembram o meu caso não têm absolutamente nada a ver comigo, conforme fica bem claro logo no primeiro parágrafo do meu post (acima). Logo de cara eu avisei que qualquer professor pode criticar meu doutorado, pois eu jamais o desqualificaria dizendo que ele não entende de pesquisa. Você critica a arrogância acadêmica (e eu não nego que há acadêmicos arrogantes, é óbvio), mas a verdade é que o seu comentário é que revela uma arrogância inegável.

      Sobre a Folha, considero esse jornal de péssima qualidade - também, pudera, seus editoriais defendem que mensaleiro não deve ser preso! Sobre a fala que você citou da Veja, estou de acordo com ela. Por que você achou que eu deveria discordar?

      Sobre as Federais, clique no marcador "Universidade" para ver o que eu penso: é isso mesmo o que você diz que eu deveria defender. Leia, em particular, o post "A 'outra universidade' de Pedro Demo é ouro dos tolos".

      Por fim, dizer que a "riqueza da geografia" está em "olhar além de números" é só uma desculpa para os geógrafos e professores continuarem a defender seus interesses particulares e/ou seus preconceitos ideológicos sem qualquer compromisso de provar o que estão dizendo. Veja a propósito o texto "Agricultura e Mercado no Brasil" (barra lateral do Blog) e o post "Capitalismo é a melhor solução para a fome, mas os marxistas não querem ver".

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  2. Diniz,

    Veja só... Faz alguns meses encontrei um velho amigo de adolescência que, por acaso também cursou a faculdade de geografia comigo lá na UFRGS. Na época, eu me definia como 'anarquista', tinha simpatia pela social-democracia como algo "menos pior" e já rejeitava o marxismo, embora achasse que "sabia entender a realidade dialeticamente" e essas bobagens. Esse meu camarada era um típico "alienado" para estes questões ou, melhor, ainda não corrompido pelo esquerdismo. Cerca de duas décadas se passaram e, bem... Ele virou um petista e professor de ensino público com todos aqueles vícios e clichês que conhecemos. Discutindo, quer dizer, conversando com o sujeito, ele me dizia que "o socialismo de verdade ainda não foi aplicado e blá-blá-blá" que bem conhecemos. Daí retruquei "...se tu acredita mesmo nisto, então o 'capitalismo de verdade' também não foi aplicado, basta ler os estudos liberais clássico e, qualquer crítica que se faça ao capitalismo também não vale da mesma forma que tu diz que qualquer crítica que se faça ao socialismo não vale porque o 'verdadeiro ainda não foi aplicado'". E, claro, ele redarguiu com veemência "Não! Não é a mesma coisa, não!" Ou seja, o sujeito não foi capaz de exercer um mínimo que seja de raciocínio lógico. Por que diabos eles acham que a lógica do argumento que serve para criticar uma das posições ideológicas não deve servir para a outra?!?!?! Este passionalismo infantil, burro e sem o mínimo de logicidade é que embasa muitos de nossos professores que, ao menos, se dessem o mínimo trabalho de ler o que defendem, como é o caso de Marx saberiam que este filósofo tinha uma visão evolucionista pró desenvolvimento capitalista como pré-condição para a revolução e não, o protecionismo econômico, intervencionismo estatal e corporativismo profissional que, na prática, é o que defendem nossos professores.

    Querem melhores professores? Aprofundem os testes de raciocínio lógico e reduzam as aulas de pedagogia freireana que já teremos um bom começo.

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    1. Infelizmente, é a mais pura verdade. Pedagogos freirianos e professores "críticos" (tanto os universitários quanto os do ensino médio) usam a desqualificação do interlocutor e raciocínios baseados na lógica de um peso e duas medidas para validarem seus preconceitos ideológicos. Mas construir argumentos a partir de estatísticas e bibliografia (aí incluídas as obras marxistas), nada!

      Qualquer um pode criticar a minha tese de doutorado. Eu nunca iria ignorar uma crítica dizendo "ah, você não fez pós". E eu não vejo problema nenhum em citar artigos escritos por um professor que não atua na universidade (como é o seu caso, aliás). O importante é que o artigo tenha boa argumentação, ora essa. Mas uns anônimos aí, na falta de argumentos, saem dizendo que só quem dá aula no ensino médio e fundamental pode falar de doutrinação ideológicas nas escolas... É a arrogância substituindo a argumentação. Paciência, vamos fazendo nosso trabalho do mesmo jeito.

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  3. Eu e o Anselmo demos muita aula em ensino médio e fundamental. O Anselmo mais do que eu. Em momento algum eu desqualifico as realidades que você apresenta, justamente por serem realidades. Professor de ensino médio e fundamental, em geral, sempre atua numa condição de assimetria com os alunos: eles detêm conhecimento, os alunos não. Daí, acham que todos os seus interlocutores que não os aplaudem como foquinhas são burros ou malvados, e quando humilhados por fatos, arrogantes. Viver com adolescente causa este tipo de corrupção na mente das pessoas que não sabem que são apenas dadorezinhos de aulas, e não são capazes de "professar" doutrina nenhuma. O próprio título professor já é de grande arrogância.
    Os anônimos, incapazes de obter, manipular e interpretar bases estatísticas sempre acham que existe algum excepcionalismo na geografia. Mas não há. Ciência deve se basear em hipóteses, experimentos e explicações e conclusões advindas das premissas consideradas. Caso contrário, não é ciência.

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  4. Todos os docentes fazem transposições didáticas o tempo todo, a diferença é o grau necessário para o entendimento do conteúdo. Presume-se que um estudante de mestrado ou doutorado tenha bagagem suficiente para assimilar as idéias sem grandes simplificações.

    O fracasso do sistema escolar brasileiro é essencialmente um problema de mentalidades arraigadas. O senso comum demoniza qualquer iniciativa que traga competição e a busca pela excelência em sala de aula, nivelando todos por baixo. Ao mesmo tempo, como tais iniciativas costumam ser acompanhadas de avaliações quantitativas - a única forma confiável de saber a diferença de aprendizado entre um estudante da Serra Gaúcha e outro do interior do Pará - criou-se uma ojeriza aos números e, de quebra, às colaborações que outros especialistas podem trazer. Corre-se atrás do próprio rabo, então: não é possível comparar estudantes de realidades diferentes sem considerá-las...mas alterá-las fica impossível, então o jeito é não comparar nada. Não se sabe quem está ruim, quem está bom, como melhorar o que pode ser melhorado.

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