sexta-feira, 10 de maio de 2013

Joelmir Beting e as raízes da desigualdade brasileira

Eu tinha pensado em escrever um ou dois posts sobre Joelmir Beting por ocasião de sua morte, mas acabei me ocupando de outros temas, e deixei passar. Agora, vou comentar um artigo em que esse ótimo jornalista econômico fez uma análise sobre as causas da desigualdade de renda no Brasil que, francamente, é até mais científica do que muita coisa que se costuma escrever na academia sobre o tema. 

O texto, publicado originalmente em 1996, começa citando a informação de que o índice de Gini da concentração de renda para o Brasil era de 0,60, conforme dados de 1993. A maior do mundo, conforme um estudo sobre 179 países apresentado no World Outlook, do Banco Mundial. No intuito de esclarecer as razões desse recorde, Beting começa por fazer uma revisão das principais teses usadas pelos acadêmicos para explicar o fenômeno da altíssima desigualdade brasileira, conforme segue:


Herança escravocrata: é a tese defendida por intelectuais consagrados, como Fernando Henrique Cardoso e Darcy Ribeiro. Contudo, Beting afirma que o argumento não bate porque existem 67 países com a mesma herança, e com "resíduos ainda mais pesados" da escravidão, mas cuja desigualdade de renda era menor do que a nossa. Tal refutação faz todo o sentido, como prova o exemplo do Haiti. Em 2001, segundo dados do Gapminder World, esse país tinha uma desigualdade de renda um pouco inferior à brasileira, muito embora a história haitiana seja marcada por políticas de segregação racial que não existiram no Brasil (ver aqui); 

Concentração fundiária: Ele cita o economista Edmar Bacha como um dos defensores da tese de que a reforma agrária é pré-condição necessária para melhorar a distribuição de renda. O contra-argumento de Beting é que, embora o índice de Gini da concentração fundiária no Brasil fosse de 0,83, havia outros países no mundo onde o problema da fome, segundo dados da FAO, era muito pior do que aqui. Nesta ordem, os campeões eram Afeganistão (73% da população subnutrida!), Somália (72%) e Haiti (69%). Em Cuba, o percentual era de 9%, enquanto no Brasil era de 6,5%. No ranking da FAO, o Brasil estava na posição 108.

Talvez possamos questionar Beting dizendo que o percentual de subnutridos é um indicador de pobreza absoluta (privação de bens essenciais), o que é diferente dos indicadores de concentração de renda, que medem a pobreza relativa. Ainda assim, é claro que a capacidade da agropecuária brasileira de atender bem à demanda por alimentos e, portanto, de reduzir a pobreza absoluta, depõe contra a tese de que concentração fundiária seja um fator importante para explicar a desigualdade. Atualmente, o melhor argumento contra a tese de Bacha é a trajetória do Programa Nacional de Reforma Agrária, que se revelou um fracasso tanto em termos de produção agrícola quanto de combate à pobreza rural (Graziano, 2004).

Previdência social: Beting concorda que o sistema previdenciário contribui para a alta desigualdade brasileira. Mas não deixa de ressaltar que o problema não é exclusivamente nosso, conforme a seguinte passagem de seu texto, redigida naquele estilo vivaz que lhe dava originalidade no jornalismo econômico:
A Previdência Pública e Universal, ampliada pela Constituição Cidadã de 1988, está tecnicamente falida, com vela na mão e padre na cabeceira. A massa das contribuições não alcança a carga dos benefícios. Ela se finge de viva e de ativa porque aplica escandaloso estelionato atuarial nos segurados. Quem contribui com dez, aposenta-se com cinco ou seis. A questão é que ainda temos seguridade social para consertar. Segundo a PNUD, dezenas de países nem sabem o que isso significa. Afinal, as fórmulas previdenciárias de repartição, inauguradas no século passado […], estão fazendo água por todos os furos. Até mesmo na Suécia, onde o cidadão já nasce aposentado. [...] A implosão anunciada da Previdência Pública projeta novos lances de desigualdade social pela proa da virada do século: a classe pobre fica com o rescaldo da recauchutagem estrutural do sistema e a classe média troca a derrocada da utopia estatal pela escalada da seguridade privada (Beting, 1996, p. 157).
"A culpa é das elites": tipo de explicação que não explica nada, já que não descreve os mecanismos pelos quais uma elite sem rosto, e supostamente insensível, produziria pobreza. Daí que Joelmir Beting fez bem em citar as palavras de Bolívar Lamounier para caracterizar esse tipo de discurso: "infantilismo intelectual".

O problema educacional: essa tese é defendida por economistas liberais, como José Alexandre Scheikman. A bibliografia internacional sobre o assunto mostra que existe relação direta entre má qualificação da mão de obra e concentração de renda. O Brasil da década de 1960 é um bom exemplo disso, já que o forte crescimento econômico da época elevou em muito os rendimentos do trabalho da população mais escolarizada. Vejamos, novamente, as palavras de Beting:
Crescimento torna escassa a mão de obra qualificada e alarga a distância entre o rendimento dos preparados e o dos não capacitados. Fenômeno que se repete aqui nos anos 90. Com uma novidade: diferenciação provocada não por crescimento mas por modernização acelerada. Processo assim resumido por José Márcio Camargo, da PUC-RJ: 1) precarização do emprego e do salário dos despreparados, excluídos da economia formal; 2) enobrecimento do trabalho e da renda dos que permanecem empregados nas empresas que se modernizam. [...] Parece, no entanto, que também na educação o Brasil parou de piorar e começa a reagir. O ministro Paulo Renato Souza comanda algo parecido com uma revolução silenciosa no setor (Beting, 1996, p. 158).
A explicação é correta, e exposta de maneira simples e concisa. Contudo, os inegáveis avanços ocorridos durante a gestão de Paulo Renato não podiam invalidar a tese de que a alta desigualdade brasileira se devia à má qualificação da mão de obra, posto que, na época em que Beting publicou seu texto, tais mudanças eram ainda recentíssimas. Mas, tudo bem, ele não disse que essa tese estava errada; apenas procurou relativizá-la para mostrar que a baixa qualificação é insuficiente para explicar o motivo de a desigualdade brasileira da época ser a maior do mundo.

Apesar de um ou outro reparo, avalio que a revisão bibliográfica feita por Joelmir Beting sobre a questão da desigualdade foi muito pertinente. Melhor ainda, porém, foi a tese que ele apresentou na sequência para explicar a desigualdade recorde que o Brasil exibia na época. Segundo ele, o que o país tinha de original, e que podia explicar uma desigualdade superior à dos demais, era um mecanismo generalizado de correção monetária, o qual alimentou a inflação e potencializou seus efeitos perversos sobre a distribuição de renda. Não é à toa que a desigualdade começou a cair logo depois do sucesso do Plano Real em controlar a inflação e desindexar a economia. Trato disso em outra postagem, que este texto já vai longe.

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BETING, J. Os párias do quatrilhão. Veja, p. 154-164, 25 dez. 1996.

GRAZIANO, X. O carma da terra no Brasil. São Paulo: A Girafa Editora, 2004.

4 comentários:

  1. A minha opiniao para explicar a alta desiguldade de renda no Brasil eh pelo fato dos pobres do Brasil estarem de fora do capitalismo enquanto os ricos estao dentro. A ideia vem de Hernando de Soto no livro The Mystery of Capital.

    Capitalismo eh composto de livro comercio, estabilidade macro, burocracia e rule of law, e propriedade privada.

    Rico tem acesso a comercio quando vai de aviao fazer compras no exterior. O pobre fica preso no protecionismo nacional.

    Rico sofre menos impacto da inflacao alta (estabilidade macro) pois tem investimentos do que o pobre que sofre mais com inflacao nos gastos mensais.

    Rico usa do jeitinho com amigos no alto escalao do governo e com despachantes para lidar com a burocacia e o rule of law. O pobre simplesmente parte para a ilegalidade e o alto risco de perder riqueza de tomar decisoes sem contrato coberto pelo rule of law.

    Rico tem propriedade privada reconhecida pelo Estado que pode ser hipotecada como garantia de investimento (capital). Pobre mora em propriedade nao registrada portanto sem capacidade de gerar capital na sua vida pois nao pode hipotecar ou alugar com cobertura da justica.

    Somado tudo isso temos uma sociedade em que existe capitalismo para os ricos e nada para os pobres que sao seduzidos pelo estatismo com a promessa de destruir o sistema que existe em permanente alta desiguldade.

    Para o capitalismo englobar todos em uma sociedade ele exige poucas e boas leis sendo aplicadas no mundo real, burocracia e justica extremamente simples e de baixo custo, facilidade e liberdade em registrar e manipular a propriedade privada e excelente estabilidade macro.

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    1. Também li esse livro do De Soto, e concordo com você. O capitalismo é bom para todos se as instituições que dão suporte ao funcionamento da economia de mercado oferecerem a todo mundo a capacidade de investir dinheiro para fazer mais dinheiro. Em países como o Brasil, o sistema institucional protege os ricos numa "redoma de vidro", para usar uma expressão desse autor, em que o capitalismo funciona plenamente, enquanto o restante da população, não podendo fazer dinheiro por sua própria conta, espera ajuda estatal.

      Melhor para os políticos malandros, que enriquecem montados num Estado hipertrofiado que opera dando com uma mão e tirando com a outra. Foi bem isso o que se viu na história da correção monetária: a indexação generalizada visava proteger todo mundo da inflação sem prejudicar a capacidade do Estado gastar por conta, sob a justificativa de que o Estado precisava investir pesadamente para superar gargalos da estrutura econômica e melhorar a qualidade de vida. Na prática, funcionou como um reforço à "redoma de vidro", pois protegeu profissionais liberais e empresários da inflação ascendente, enquanto os salários eram corroídos. Nesse sentido, a superindexação da economia é uma boa pista para explicar a razão de o Brasil figurar em pesquisas como o World Outlook com uma desigualdade de renda maior ainda do que a de outros países que padecem do mesmo problema institucional, conforme as pesquisas do De Soto.

      Mas não quero simplificar o debate. Há um porém no texto de Beting que eu não comentei para não me estender demais. Assim, aproveito o seu comentário para dizer que, de acordo com o sociólogo Sérgio Abranches, essa informação de que o Brasil tinha a maior desigualdade do mundo era questionável. Segundo ele, as informações estatísticas brasileiras eram muito mais confiáveis do que a de outros países com nível de desenvolvimento menor ou semelhante ao nosso, nos quais os sistemas estatísticos muitas vezes excluem informações referentes à minorias étnicas cujo padrão de vida é bem inferior ao da maioria da população.

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    2. Professor, há algum geógrafo que procure explicar as desigualdades entre países a partir dos diferentes cenários institucionais e as facilidades/dificuldades para se produzir riqueza?

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    3. Se existe, eu realmente não conheço. O geógrafo Anselmo Heidrich trabalhou com as teorias de Hernando De Soto em sua dissertação de mestrado, mas o tema de estudo era o conceito de função social da propriedade no planejamento urbano, razão pela qual ele analisou o Estatuto da Cidade. Quem tem tratado de entender as diferenças entre países sob a ótica das instituições são os economistas da escola institucionalista.

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