BARROS, et. al., 2006, p. 107 |
A série acima demonstra que, embora a concentração de renda seja muito alta, no Brasil, o maior pico da desigualdade se deu no ano de 1989, quando o índice de Gini atingiu 0,634. Não por acaso, esse foi o ano em que a via crúcis da crise inflacionária chegou ao ápice, com a inflação anual atingindo 1.783%. Por conta disso, Joelmir Beting (1996) concluiu que a explicação para o fato de o Brasil ter chegado a figurar como o país de mais alta desigualdade de renda no mundo, segundo estudos do Banco Mundial, ligava-se diretamente à persistência de altas taxas de inflação.
Realmente, nas décadas que antecederam ao Plano Real, a inflação acumulada superou a marca inacreditável de 1 quatrilhão por cento (Beting, 1996). Ainda assim, seria possível objetar que, embora seja reconhecido que a inflação é muito mais prejudicial para os pobres do que para as classes média e alta, outros países tiveram inflação tão ou até mais alta do que a brasileira nesse período e, mesmo assim, apresentavam menor concentração de renda. A explicação desse excelente jornalista é que o diferencial do Brasil estava em haver ido muito mais longe do que qualquer outro país na instituição de mecanismos de correção monetária:
Lá fora, a correção é utilizada, desde o século passado, somente em casos de exceção e em prazos nunca inferiores a um ano. Correção exclusivamente de contratos e obrigações, incluídos os títulos públicos de até trinta anos. Aqui, introduzida em 1964, a coisa desandou. Adotada para conciliar altas taxas de inflação (de 92,1% em 1964) com o resgate da poupança interna, fiadora de crescimento futuro, o do "milagre", a correção contentou-se com os títulos públicos, títulos privados (assim nasceu a gloriosa caderneta de poupança), impostos e tarifas. Autores da inovação, os então ministros Octávio Gouvêa de Bulhões (1906-1990), da Fazenda, e Roberto de Oliveira Campos, do Planejamento, decretaram duas cautelas: 1) abandonar a correção quando a inflação anual regredir para um dígito; 2) proibir terminantemente a indexação do câmbio, dos depósitos à vista e dos reajustes salariais (Idem, p. 160).
A restrição se explicava pela teoria econômica, desde Milton Friedman: "se todos os valores da economia forem reajustados pela inflação passada, a inflação futura jamais ficará abaixo da inflação passada" (Idem, ibidem). Depois da saída dos dois ministros, com inflação na casa de 35% ao ano e ditadura sob contestação popular, foi instituída a correção monetária do câmbio e dos salários. Pouco depois, também dos depósitos à vista!
Portanto, se o Brasil chegou a ter a desigualdade de renda mais alta do mundo, não foi por causa de uma terrível insensibilidade "das elite", como dizem nossos sindicalistas, nem pelo fato de o Brasil ser, como se afirma por aí, o único país do mundo que não realizou uma reforma agrária. Conforme mencionado no post Joelmir Beting e as raízes da desigualdade brasileira, a especificidade do Brasil está em que "[...] metade dos brasileiros viveu trinta anos com correção monetária. A outra metade, com corrosão inflacionária" (Idem, p. 154). Estes são, de fato, os "párias do quatrilhão".
A inclusão dos párias
Várias tentativas foram feitas para extinguir a correção monetária. Durante a ditadura, os ministros Delfim Netto e Mário Henrique Simonsen bem que tentaram desindexar a economia, mas sem sucesso. O mesmo se deu em 1986, com o Plano Cruzado. Somente o Plano Real conseguiu a proeza, com resultados evidentes em termos de queda da desigualdade. O gráfico acima mostra essa tendência, mas vale ressaltar que a renda domiciliar per capita é um indicador muito menos sensível às variações da inflação e outras mudanças econômicas de curto prazo, já que depende em grande medida da dinâmica demográfica, isto é, da diminuição do tamanho das famílias mais pobres. Já quando se consideram os indicadores de desigualdade dos rendimentos do trabalho, mostrados no post Brasil prova que desigualdade não gera violência, com base num estudo de Hoffman (2006), vemos que os efeitos do Plano Real em termos de distribuição de renda foram intensos e rápidos. Beting já havia registrado isso, na época:
O Plano Real vai consolidando o mais profundo processo de redistribuição de renda do capitalismo. Pelos indicadores fornecidos pelo IBGE, Ipea, FGV, PUC-RJ, Fipe, Unicamp e Dieese, estamos desconcentrando em três anos uma sinistra concentração de trinta anos. [...] O rendimento real médio subiu acima de 25% para o salário em carteira, acima de 44% para o trabalho informal e acima de 55% para os autônomos. Únicos barrados no baile: os servidores federais, ainda congelados (Beting, 1996, p. 164).
Mas isso não quer dizer que, segundo o autor, a indexação da economia fosse a causa única da desigualdade. Beting estava ciente de que esse fenômeno tem várias causas, como geralmente acontece quando se trata de processos sociais. Contudo, ele deu uma contribuição à ciência social ao avisar que a academia dormiu no ponto ao não ver que a generalização da correção monetária era o fator mais importante para explicar o motivo de a concentração de renda no Brasil ser a maior do planeta: "os pesquisadores da desigualdade menosprezaram a indexação. E os estudiosos da indexação ignoraram a desigualdade. Estávamos sentados no maior laboratório social do mundo e não vimos a cobaia. Pior ainda, não vimos sequer o laboratório. Triste" (Idem, ibidem).
E, antes que eu me esqueça, registro o puxão de orelha que Joelmir Beting deu em nossa esquerda intelectual, uma vez que esta, favorável à realização de "investimentos maciços" em políticas industriais e sociais, sempre viu a inflação com grande dose de tolerância. De fato, o Estado se valeu da inflação, durante décadas, para alargar sua capacidade de gastar, posto que a arrecadação de impostos era indexada à inflação, mas os dispêndios do governo com salários, compra de materiais de consumo, etc., eram reduzidos no intervalo entre os reajustes acertados em contrato e pela política salarial. Nas palavras dele, "[...] intelectuais de esquerda e dirigentes sindicais, posseiros do distributivismo por decreto, condenaram sistematicamente toda e qualquer tentativa de desindexação da economia. Assim como brigam, ainda hoje, pela reindexação da própria" (Idem, p. 163 - grifo meu).
Um jornalista assim faz falta.
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BARROS, R. P. et al. A queda recente da desigualdade de renda no Brasil. In: BARROS, R. P.; FOGUEL, M. N.; ULYSSEA, G. (org.). Desigualdade de renda no Brasil: uma análise da queda recente. Brasília: Ipea, v. 1, 2006.
BETING, J. Os párias do quatrilhão. Veja, p. 154-164, 25 dez. 1996.
BETING, J. Os párias do quatrilhão. Veja, p. 154-164, 25 dez. 1996.
HOFFMAN, R. Queda da desigualdade da distribuição de renda no Brasil, de 1995 a 2005, e delimitação dos relativamente ricos em 2005. In: BARROS, R. P.; FOGUEL, M. N.; ULYSSEA, G. (org.). Desigualdade de renda no Brasil: uma análise da queda recente. Brasília: Ipea, v. 1, 2006.
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