terça-feira, 1 de outubro de 2013

Quando o Estado moderno aprendeu a dizer sim com bons motivos

Estou muito longe de ser um admirador das ideias do filósofo Michel Foucault. No entanto, há uma observação histórica que ele faz a respeito da transformação da "economia política do poder", ocorrida do século XVIII em diante, que me parece muito interessante como pista para entender os problemas do mundo contemporâneo. É a seguinte:
Pois, o que é o soberano para os juristas, e isto para os juristas medievais, mas também para todos os teóricos do direito natural, tanto para Hobbes como para Rousseau? O soberano é aquele que é capaz de dizer não ao desejo de todo indivíduo, sendo o problema o de saber como esse "não" oposto ao desejo dos indivíduos pode ser legítimo e fundado na própria vontade dos indivíduos. Enfim, esse é um enorme problema. Ora, vemos formar-se, através desse pensamento econômico-político dos fisiocratas, uma ideia bem diferente, que é a seguinte: o problema dos que governam não deve ser absolutamente o de saber como eles podem dizer não, até onde podem dizer não, com que legitimidade eles podem dizer não; o problema é o de dizer sim, como dizer sim a esse desejo. Não, portanto, o limite da concupiscência ou o limite do amor-próprio, no sentido do amor a si mesmo, mas ao contrário tudo o que vai estimular, favorecer esse amor-próprio, esse desejo, de maneira que possa produzir os efeitos benéficos que deve necessariamente produzir. Temos aí portanto a matriz de toda uma filosofia, digamos assim, utilitarista (Foucault, 2008, p. 96).
É uma forma muito boa de explicar a mudança ocorrida no pensamento social a partir de meados do século XVIII, quando a escola fisiocrática, representada sobretudo por François Quesnay (1694-1774), começa a fundamentar a visão de que o Estado só é capaz de levar a população à prosperidade quando concede aos indivíduos uma ampla liberdade de ação econômica. O raciocínio é que o livre mercado incentiva os indivíduos a deixar de produzir para si mesmos e se dedicar a produzir para os outros com o fim de ganhar dinheiro. Assim, uma série inumerável de decisões fundadas no interesse econômico individual aprofunda a divisão social do trabalho e constitui uma rede de cooperação que amplia a produção e a produtividade do trabalho, beneficiando a todos com o atendimento das mais diversas necessidades. Em 1776, no famoso livro A riqueza das nações, Adam Smith formulou essa tese de forma mais completa e rigorosa, ao ressaltar que o livre mercado aprofunda a divisão social do trabalho, promove uma alocação mais eficiente dos recursos e alavanca a produtividade.

Duas observações são importantes, nesse contexto. A primeira delas é que essa teorização econômica permitia, como bem observa Foucault, fundamentar a ação do Estado em uma nova ciência, então chamada economia política, o que conferia uma base racional e objetiva para a ação estatal. A segunda observação é que essa ciência econômica recém-nascida, embora servindo para orientar o Estado, reduzia o seu poder diante do desejo dos indivíduos (algo que Foucault não afirma de modo algum, mas que é importante frisar). De fato, os economistas liberais sustentavam que o funcionamento de uma economia de mercado se baseia na racionalidade dos indivíduos, de sorte que ao governo cabe regular o sistema de incentivos econômicos, em vez de tentar ser o condutor do processo de desenvolvimento. 

Ora, essa visão favorável sobre os efeitos sociológicos do funcionamento do mercado surgiu em meados do século XVIII por duas razões. A primeira delas é que o racionalismo iluminista põe abaixo a ideia medieval de predestinação, segundo a qual o sofrimento dos indivíduos deriva de um destino pessoal determinado por Deus, e a substitui pela ideia de que a pobreza e outras formas de sofrimento têm origem em falhas na organização da sociedade. A segunda razão é que, nessa época, pela primeira vez na história, o comércio e o assalariamento estavam suficientemente difundidos, ao menos em alguns países da Europa ocidental, para tornar perceptíveis os efeitos econômicos dos incentivos à busca de satisfação de desejos individuais.

Portanto, não surpreende que os países onde essas ideias triunfaram sobre as políticas de comércio administrado próprias do período mercantilista entrariam numa marcha ascendente de prosperidade do século XIX em diante, conforme fica claro quando se comparam países como Inglaterra e EUA, de um lado, e Portugal e Espanha, de outro. Em meados do século XIX, os países americanos e europeus que hoje estão entre os mais desenvolvidos do mundo lograram também constituir um sistema institucional de proteção e representação da propriedade privada que multiplicou as oportunidades individuais para fazer trocas e investir dinheiro com o fim de gerar mais dinheiro, alavancando o progresso econômico e social, conforme explica a escola institucionalista de economia.

Sobre o presente

Tais ideias nos ajudam a pensar o presente pelo contraste com o passado. Com a expansão das funções econômicas e sociais do Estado, especialmente nas décadas que se seguiram à crise de 1929, a ciência econômica passou a ser usada para justificar que o Estado diga sim de uma maneira muito diferente. Ao invés de liberar os indivíduos desejosos de conquistar uma vida melhor com seus próprios esforços, o "sim" do Estado contemporâneo consiste em usar mecanismos de distribuição de renda externos ao mercado, bem como alguns instrumentos de regulação macroeconômica, para atender aos desejos individuais poupando os indivíduos, tanto quanto possível, de se esforçar e de correr riscos.

E o raciocínio não vale apenas para a economia. Foucault comenta o papel de outras ciências no processo de transformação da "economia política do poder", tais como a demografia e a medicina. Nos dias de hoje, o Estado vem se utilizando cada vez mais da medicina para dizer não aos indivíduos, sempre a título de zelar pela saúde de todos e de cada um. 

E há uma novidade aí: do final do século XX em diante, as ciências da natureza vêm sendo também mobilizadas para justificar todo tipo de intervenção do Estado na economia e nos padrões de consumo, como fica claro, por exemplo, na discussão sobre a tese do aquecimento global antropogênico e das medidas que seriam necessárias para resolver esse suposto problema. 

Em resumo, o Estado moderno diz sim quando deveria dizer não e diz não quando deveria dizer sim! Mas sempre apoiado na ciência, é lógico. No próximo post, vou apresentar algumas breves considerações sobre isso.

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FOUCAULT, M. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

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