sexta-feira, 11 de maio de 2012

A inutilidade do conceito de "função social" da propriedade

O economista Maílson da Nóbrega já comentou em um artigo que, nas constituições dos países anglo-saxões, inexiste o conceito de função social da propriedade. Ao ler algo assim, a grande maioria dos brasileiros deve pensar: “isso é que é capitalismo selvagem!”. Afinal, a desconfiança em relação à economia de mercado e seus efeitos sociais e sociológicos é tão forte no Brasil que acabou sendo consagrada pela constituição de 1988, segundo a qual o direito de propriedade tem de ser relativizado pelo conceito de função social. 

Essa diferença entre os dois tipos de construções jurídicas tem raízes que remontam, pelo menos, ao século XVIII. Naquela época, já se delineava a visão liberal de que a economia de mercado oferece incentivos econômicos para que os indivíduos trabalhem, façam trocas, poupem e invistam, de sorte que a economia capitalista acaba sendo simultaneamente competitiva e cooperativa: para ganhar dinheiro, é preciso vender algo que seja necessário para os outros, de maneira que a concorrência entre empreendedores acaba sendo definida pelo objetivo de oferecer aos clientes a melhor relação custo/benefício possível. Se cada um fizer o que é bom para si mesmo, o coletivo sai ganhando. 



No caso das propriedades urbanas e rurais, o mercado cria incentivos para que seus donos as utilizem de modo a fazer dinheiro, seja utilizando-as como garantia de empréstimos para investimentos, seja como fontes de renda mediante locação, seja ainda como espaço físico para a produção de bens e serviços. Nesse contexto, as legislações dos países anglo-saxônicos se estruturam com base na ideia de que, quanto maior for a liberdade dos proprietários decidirem o que fazer de suas propriedades, maior será o benefício coletivo gerado por suas tomadas de decisão individuais e economicamente interessadas. O importante, como esclarece Hernando De Soto (2001), é que haja um sistema integrado formal de representação da propriedade, ou seja, um conjunto padronizado de leis e instituições que asseguram o direito de propriedade e que tornam os possuidores de imóveis urbanos e rurais responsáveis pelo uso que dão a esses bens. 

É por isso que, mesmo sem haver a figura da função social da propriedade nas constituições anglo-saxãs, a tal “questão agrária” simplesmente não existe por lá. E no Brasil? Basta ver os dados de produtividade agrícola e de situação nutricional que eu utilizei num estudo recente (disponível aqui) para observar que os problemas de oferta de alimentos para o mercado interno já estavam em vias de desaparecer antes da constituição de 1988. De lá para cá, nota-se que a política de reforma agrária teve de se concentrar principalmente na distribuição de terras devolutas que a União possui na Amazônia Legal porque existem pouquíssimas propriedades improdutivas que possam ser utilizadas para esse fim no resto do país, e a compra de terras encarece muito os projetos de assentamento. Quanto aos problemas urbanos, é muito fácil perceber que não são os países anglo-saxões que padecem com o problema das favelas... 

Claro, alguém pode objetar que, além das questões econômicas, relacionadas à produção agrícola e à construção de moradias, há muitos problemas de ordem ambiental, trabalhista e social que podem ocorrer se não houver uma legislação coercitiva embasada no conceito de função social da propriedade. Mas trata-se de uma objeção muito frágil, posto que, para lidar com esses problemas, já existem legislações específicas. Se um proprietário rural ou urbano “agride o meio ambiente”, como se costuma dizer, é só aplicar a legislação ambiental para puni-lo. Se ele descumpre as leis trabalhistas, que se apliquem as punições previstas por essas mesmas leis. O proprietário está plantando maconha ou montou uma fábrica de metanfetamina em sua propriedade? Que se aplique o código penal! O importante é que as propriedades sejam representadas por instituições que tornem seus donos responsáveis por elas, de modo que as diferentes legislações possam ser aplicadas eficientemente para coibir práticas ilegais. E alguém seria capaz de dizer, em sã consciência, que nos EUA ou na Inglaterra os problemas ambientais, trabalhistas e criminais são maiores do que no Brasil? 

A grande verdade é que o conceito de função social da propriedade é inútil para lidar com problemas econômicos, trabalhistas, ambientais e criminais. Tal conceito só existe como desculpa para relativizar o direito à propriedade e torná-la passível de desapropriação. E o fracasso da política de reforma agrária é a melhor demonstração de que nem como desculpa esse conceito precisaria existir em nossa legislação.

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SOTO, H. O mistério do capital. Rio de Janeiro: Record, 2001.

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