A história mostra que, se existe uma ideia dificílima de ser aceita, em qualquer sociedade, é a da igualdade de todos perante a lei. Da Antiguidade até o século XVII, o poder político se legitimava pela tese, sistematizada primeiramente por Aristóteles, de que os homens são intrinsecamente desiguais. Fosse um déspota com poderes absolutos, uma aristocracia de proprietários de terras e/ou uma elite de burocratas que acumulavam privilégios, a legitimação do poder se dava sempre com base nessa visão de que a desigualdade entre os homens seria natural e, por isso mesmo, moral. Foi somente com o iluminismo que essa tese aristotélica começou a ser contestada radicalmente. Na concepção jusnaturalista de Hobbes, os indivíduos independentes uns dos outros é que constituem o estado natural, de sorte que o poder político tem de ser exercido com vistas a garantir o princípio da igualdade de todos perante a lei e a liberdade individual para estabelecer contratos.
Essa nova filosofia política só começou a ganhar concretude com a independência dos EUA e a revolução francesa, dois eventos fundados nos ideais iluministas. Mas, mesmo depois dessas revoluções, a materialização do princípio da igualdade encontrou muito mais percalços do que se poderia prever à primeira vista. Diversas correntes antiliberais, tanto à esquerda quanto à direita, denunciaram o caráter "formal" do liberalismo político, e clamaram por uma democracia "real", isto é, eliminação efetiva da pobreza e/ou maior igualdade econômica entre os indivíduos asseguradas pela ação de um Estado planejador. Esse foi um dos pilares ideológicos dos totalitarismos socialistas e nazifascistas, o mesmo valendo para ditaduras fascistoides como a de Getulio Vargas. Tais regimes usaram formas variadas da "tese da autodestruição" do capitalismo para justificar a supressão das liberdades individuais em nome dessa democracia "real" ou "material".
E mesmo nos EUA, onde esse tipo de discurso político e econômico antiliberal não prosperou, o princípio da igualdade foi posto entre parênteses. A Declaração de Independência dos EUA consagrou a igualdade e a liberdade como direitos inalienáveis do homem, mas seu autor, Thomas Jefferson, era dono e negociante de escravos quando redigiu esse documento, e não abandonou tais negócios depois. Escreveu também a legislação civil do estado da Virgínia, a qual tornou mais severas as punições para escravos e para negros livres. Last but not least, teve oito filhos com uma escrava, os quais viveram como escravos. E ele justificava esse tratamento flagrantemente desigual contra os negros com o argumento de que a desigualdade provinha mais da raça em si do que das leis escravistas (Caldeira, 2009, p. 85).
Mas é bom que se diga que os constituintes americanos estavam bem cientes da incompatibilidade absoluta entre o estatuto da escravidão e os princípios democráticos. Seguindo a visão rousseauniana de que há momentos em que a lei deve fazer a Razão curvar-se à tradição, aos costumes, os americanos aceitaram que a escravidão continuasse a ser legal num país cuja Carta Magna é, até hoje, um exemplo de aplicação prática dos ideais iluministas. Noutras palavras, os legisladores americanos estavam cônscios de que, na democracia, o poder se legitima pela Razão, ao passo que na escravidão o poder deriva apenas do emprego da força; cedo ou tarde, esta última teria que ser abolida para fazer valer o poder legítimo, que é racional por estar fundado no regime democrático (Caldeira, 2009).
O tempo passou e a escravidão foi abolida nos EUA, não sem muito derramamento de sangue. Mas, por muito tempo, o país conviveu com leis explicitamente segregacionistas, consideradas constitucionais pela Suprema Corte. Na segunda metade do século XX, os ativistas dos direitos civis tiveram ainda muito o que lutar para que o princípio da igualdade fosse plenamente estendido aos negros. E esse ativismo foi tão bem-sucedido em sua luta que acabou pondo tal princípio mais uma vez abaixo, só que agora em benefício dos negros. As políticas de "discriminação positiva", que nesse país já datam de mais de cinquenta anos, deram aos negros americanos condições facilitadas de acesso às universidades, independentemente de mérito acadêmico. A justificativa dada é que esse tipo de privilégio é apenas temporário, pois, uma vez igualados economicamente brancos e negros, não haveria necessidade de continuar com o sistema de cotas.
O problema é que, como mostra a experiência internacional, embora essas políticas sejam sempre justificadas com o argumento de que são temporárias, acabam se tornando, na prática, permanentes. E o pior é que tais políticas mantiveram as diferenças nas estatísticas econômicas de negros e brancos, pois aqueles que conseguem usufruir das cotas são justamente os negros de classe média e alta, ou seja, os que teriam boas chances de entrar na universidade mesmo sem esse privilégio (Kamel, 2006). Os racialistas de hoje violam o princípio da igualdade tanto quanto os racistas de antigamente, mas com a diferença de que, em vez de alegarem a necessidade de aceitar temporariamente um arranjo antidemocrático em respeito às tradições, sustentam que se deve aceitar uma violação temporária dos princípios democráticos para forçar uma transformação socioeconômica e cultural que, embora já em curso, demoraria muito mais para acontecer sem as cotas. Conservadorismo e progressismo geram, em última análise, resultados similares.
E, por incrível que pareça, é esse mesmo estado de espírito que encontramos hoje no Brasil. O Supremo Tribunal Federal – STF, julgou há pouco uma ação contra a constitucionalidade da política de cotas raciais e, de maneira flagrantemente contraditória, votou por unanimidade em favor do entendimento de que esse tipo de política não fere o artigo 5. da Constituição de 1988, o qual é claro ao estabelecer a igualdade de todos perante a lei. Assim, o Brasil, país onde o racismo jamais produziu políticas de segregação racial, posto que a intensa miscigenação tornava isso impraticável, transformou-se agora num país onde o racismo está institucionalizado, na medida em que o STF entendeu que discriminar brancos em favor de negros é aceitável. E os argumentos usados pelos ministros para chegar a essa conclusão misturam o conceito de "democracia material" com a tese de que uma parte dos brancos (justamente os pobres) pode ser sacrificada por políticas discriminatórias a fim de que se estabeleça a igualdade entre as raças!
Seja com base em argumentos racistas e tradicionalistas, seja no intuito de fazer valer a igualdade econômica às custas da igualdade política (mesmo a experiência já tendo demonstrado o fracasso dessa expectativa), a verdade é que, no Brasil ou em qualquer outro lugar, não há nada mais difícil de aceitar do que o princípio da isonomia, isto é, da igualdade de todos perante a lei!
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CALDEIRA, J. História do Brasil com empreendedores. 1. ed. São Paulo: Mameluco, 2009.
KAMEL, A. Não somos racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
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