Já comentei que a "outra universidade" proposta por Pedro Demo não passa de ouro dos tolos, uma vez que ele usa vários truques retóricos para associar imagens negativas ao dito "instrucionismo" e enfeitar suas sugestões vagas e superficiais com adjetivos bonitos (ver aqui). Para não me alongar muito, deixei para outra hora a crítica da visão que ele tem das relações entre mercado e sociedade. Pois a hora de fazer essa crítica chegou.
Pedro Demo, assim como a maioria dos pedagogos e professores brasileiros, pensa no mercado como se ele fosse um ente que existe separado da sociedade e que deve ser subordinado aos interesses sociais pelo Estado. Por isso, ele inicia o texto Outra universidade dizendo isto:
[…] a universidade poderia ser, possivelmente, a instituição mais relevante e estratégica deste século, tendo em vista que pessoas educadas e suas ideias são a real riqueza das nações, em especial da riqueza globalizada. Formação primorosa é o "capital intelectual" mais decisivo de hoje, porque planta a perspectiva permanentemente aberta de desenvolvimento pessoal e social. É inegável o sabor neoliberal dessas expectativas, à medida que se reduz facilmente formação aos ditames do mercado, sobressaindo a "empregabilidade". Manter-se "empregável" significa submeter-se docilmente ao mercado que a nada se submete (desregulado, cada vez mais), como se fosse única razão de ser da sociedade (Demo, 2012, p. 1).
Do meu ponto de vista, a empregabilidade deve ser o critério básico para a estruturação dos currículos universitários, conforme já expliquei num texto um tanto longo (aqui). A razão é simples: longe de ser algo abstrato ou externo à sociedade, o mercado é uma matriz de relações sociais de troca, ou seja, relações por meio das quais os indivíduos buscam a satisfação de suas necessidades e interesses econômicos fazendo intercâmbio de bens, serviços e trabalho. O mercado é, assim, a instância da sociedade na qual as necessidades e interesses se expressam por meio de trocas materiais, tornando-se relações sociais objetivadas, concretas.
Portanto, a ideia de que manter-se empregado significa "submeter-se docilmente ao mercado" é um truque retórico nojento, pois esconde o fato de que, ao oferecer seus serviços no mercado de trabalho, os trabalhadores estão se dispondo a satisfazer as necessidades uns dos outros por meio de trocas, e não se curvando a um ente que existiria fora da sociedade ou se submetendo a interesses que seriam unicamente dos empregadores, já que estes também precisam atender a necessidades expressas no mercado para ganhar dinheiro vendendo bens e serviços. Pensar o ensino em função da empregabilidade dos estudantes é a melhor maneira de fazer a universidade cumprir seu papel social, uma vez que a sociedade é constituída por indivíduos que expressam uma miríade de necessidades subjetivas por meio do mercado.
A única alternativa à privilegiar a empregabilidade é manter o que já existe...
Realmente, qual é o critério que poderia substituir a empregabilidade na definição dos objetivos do ensino superior? A maioria dos professores e pedagogos supõe que basta conceder ampla autonomia para os professores ensinarem o que quiserem e como quiserem, pois assim eles podem deixar o mercado de trabalho em segundo plano e definir os currículos e práticas pedagógicas com base em avançadas concepções científicas e reflexões epistemológicas. A sociedade, entendida não como conjunto de indivíduos dotados de escalas de valores subjetivas e singulares, mas como um grande sujeito coletivo, sairia ganhando simplesmente porque as concepções científicas e pedagógicas dos professores tiveram primazia sobre o mercado...
Se esse critério fosse bom, a universidade estatal brasileira seria a melhor do mundo, pois é assim mesmo que já acontece! Os professores, representados pelos colegiados de curso, definem a grade curricular e as ementas das disciplinas, e cada um deles dispõe de ampla liberdade para escolher conteúdos, bibliografias e outros materiais didáticos, sem falar nos métodos pedagógicos.
Um outro mecanismo de definição dos rumos da universidade que se costuma defender, embora não com tanta frequência, é subordinar as instituições públicas a "conselhos" de representantes da sociedade civil. Pedro Demo não inclui essa ideia em sua proposta, mas dá a entender que, se o mercado não expressa adequadamente as necessidades que precisam ser atendidas pelos recém-formados, tampouco a universidade dispõe dessa capacidade.
A Universidade, em suas faces mais ambíguas, apresenta seu lado hipócrita. Declama-se como casa da inovação, porque é uso vincular educação e conhecimento com inovação. Mais que isto, proclama que ela sabe – sozinha – o que é inovação decente. Não aquela do mercado ou dos poderosos, mas aquela comprometida com a sociedade e seus cidadãos (Demo, 2010, p. 40).
Se a universidade não sabe dizer por ela mesma o que é "inovação decente", quem deveria ajudá-la nessa tarefa? O mercado não é, já que, como se confirma na passagem acima, o autor o vê como algo fora da sociedade e que nada tem a ver com os cidadãos, que nunca compram nem vendem nada. O Estado também não deve ser, já que estaria ligado à inovação "dos poderosos". A única saída seria formar os tais "conselhos", alternativa que o autor omite.
Menos mal, pois a instituição desse tipo de mecanismo seria desastrosa, já que esses "conselhos" não representam a sociedade em seu conjunto, mas apenas as visões de mundo e interesses particulares dos representantes que os compõem, escolhidos por sindicatos, ONGs e órgãos de governos. A instituição de "conselhos" desse tipo é só aparelhamento do Estado, nada tendo a ver com representação de interesses da sociedade ou dos cidadãos.
Como se vê, a "outra universidade" de Pedro Demo tanto é ouro dos tolos como implica relações de poder muito próximas do que já está aí: autonomia para os professores ensinarem o que quiserem e como quiserem sem terem que dar muita bola para o mercado.
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DEMO, P. Outra universidade. 2010. Disponível em: <http://www.prograd.ufscar.br/PedroDemo_OutraUniversidade.pdf> Acesso em 26 maio 2012.
Parabéns! Excelente artigo, excelente blog. Virei leitor. Abraços
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