Um escritor que aprecio bastante é Italo Calvino, do qual já li vários livros. É óbvio que não vou jogar tomates nele! Apenas me veio à lembrança uma passagem de seu livro As cidades invisíveis (Companhia das Letras, 1990) que eu pensei em usar como epígrafe da minha tese de doutorado. Mudei de ideia apenas por ter achado que essa passagem, embora bem curta para um conto, era longa demais para uma epígrafe.
Mas vou explicar o motivo de ter pensado em citar tal passagem. É que a tese tratava de geografia econômica e, ao discutir os conceitos de região usados por algumas das principais teorias de desenvolvimento regional, notei que, assim como em todos os outros campos da ciência, existe aí um dilema entre representar a realidade por meio de modelos matemáticos abstratos ou por descrições históricas detalhadas. E constatei também que, ao contrário do que ocorre em outros ramos da economia, a geografia econômica é justamente aquele em que os modelos matemáticos deram menos retorno, no sentido de que os modelos usados no estudo da dimensão espacial da economia jamais conseguiram evoluir em detalhamento e plausibilidade do modo como se deu com os modelos elaborados em outros campos. Esse foi um dos motivos pelos quais optei por usar uma metodologia de pesquisa de tipo histórico e indutivo.
Entretanto, não vou repetir aqui o que já escrevi na tese. Apenas me deu vontade de tirar uns minutos do meio deste feriadão de primeiro de maio para reler essa passagem de Calvino, a qual faz uma bela metáfora desse dilema inerente às ciências, especialmente as da sociedade. E daí então me veio a vontade de transcrever aqui a passagem que eu quase citei como epígrafe da tese. Aí está ela.
Aos pés do trono do Grande Khan estendia-se um pavimento de maiólica. Marco Polo, informante mudo, espalhava o mostruário de mercadorias trazidas de suas viagens aos confins do império: um elmo, uma concha, um coco, um leque. Dispondo os objetos numa certa ordem sobre os azulejos brancos e pretos e, a partir daí, deslocando-os com movimentos estudados, o embaixador tentava representar aos olhos do monarca as vicissitudes de sua viagem, o estado do império, as prerrogativas de remotas capitais de província.
Kublai era um atento jogador de xadrez; seguindo os gestos de Marco, observava que certas peças implicavam ou excluíam a proximidade de outras peças e deslocavam-se de acordo com certas linhas. Transcurando a variedade de formas, ele definia a disposição de um objeto em relação ao outro sobre o pavimento de maiólica. Pensou: "se cada cidade é como uma partida de xadrez, o dia em que eu conhecer as suas regras finalmente possuirei o meu império, apesar de que jamais conseguirei conhecer todas as cidades que este contém".
No fundo, era inútil que para falar de suas cidades Marco utilizasse tantas ninharias: bastava um tabuleiro de xadrez com peças precisamente classificáveis. Para cada peça podia-se atribuir alternadamente um significado apropriado: um cavalo podia representar tanto um cavalo real quanto um cortejo de carroças, um exército em marcha, um monumento equestre; e uma rainha podia ser uma dama debruçada no balcão, uma fonte, uma igreja com a cúpula cuspidata, um pé de marmelo.
Ao retornar de sua última missão, Marco Polo encontrou o Khan à sua espera, sentado diante de um tabuleiro de xadrez. Com um gesto, convidou-o a sentar à sua frente e descrever-lhe as cidades que visitara apenas com o auxílio do xadrez. O veneziano não se desesperou. O xadrez do Grande Khan era composto de grandes peças de marfim polido: dispondo sobre o tabuleiro torres ameaçadoras e cavalos sombrios, condensando uma grande quantidade de peças, traçando avenidas retas ou oblíquas como os movimentos da rainha, Marco recriava as perspectivas e os espaços de cidades brancas-e-pretas em noites de lua.
Ao contemplar essas paisagens essenciais, Kublai refletia sobre a ordem invisível que governava a cidade, sobre as regras a que respondiam o seu surgir e formar-se e prosperar e adaptar-se às estações e definhar e cair em decadência. Às vezes, parecia-lhe estar prestes a descobrir um sistema coerente e harmônico que estava por trás das infinitas deformidades e desarmonias, mas nenhum modelo resistia à comparação com o jogo de xadrez. Pode ser que, em vez de insistir em evocar com o magro auxílio de peças de marfim visões de qualquer modo destinadas ao esquecimento, bastasse jogar uma partida segundo as regras e contemplar cada um dos estados sucessivos do tabuleiro como uma das inúmeras formas em que o sistema de formas se organiza e se destrói.
Kublai Khan já não precisava mandar Marco Polo em expedições distantes: detinha-o para jogar intermináveis partidas de xadrez. O conhecimento do império escondia-se no desenho traçado pelos angulosos saltos do cavalo, pelos espaços diagonais que se abrem nas incursões do bispo, pelo paço arrastado e prudente do rei e do humilde peão, pelas alternativas inexoráveis de cada partida.
O Grande Khan tentava identificar-se com o jogo: mas agora era o motivo do jogo que lhe escapava. O objetivo de cada partida é um ganho ou uma perda: mas do quê? Qual era a verdadeira aposta? No xeque-mate, sob os pés do rei derrubado pelas mãos do vencedor, resta um quadrado preto ou branco.
Com o propósito de desmembrar as suas conquistas para reduzi-las à essência, Kublai atingira o extremo da operação: a conquista definitiva, diante da qual os multiformes tesouros do império não passavam de invólucros ilusórios, reduzia-se a uma tessela de madeira polida: o nada...
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