Os geógrafos Bertha Becker e Claudio Egler já escreveram trabalhos bem interessantes. Gosto sobretudo da tese de doutorado de Egler, que foi uma das referências fundamentais para a elaboração do meu próprio doutorado. Mas, ainda que esses autores nunca tenham se identificado com as bandeiras da geocrítica, é certo que, vez por outra, valem-se de teorias radicais que acabam conduzindo a conclusões que, como se diz, geram mais calor do que luz.
É o caso do livro Brasil: uma nova potência regional na economia-mundo. Esse livro é, de um lado, uma obra de introdução sobre o Brasil que trata de elementos bastante diversos, como história, geopolítica, economia, planejamento regional, problemas sociais e discriminações. De outro lado, é um esforço de interpretação da realidade brasileira que, mesmo sem a intenção de tecer uma “teoria do Brasil” (como pretendeu fazer Milton Santos, sem sucesso), procura articular todos esses elementos por meio de uma teoria geral. O marco teórico usado para tanto foram os estudos de Immanuel M. Wallerstein sobre a formação da economia-mundo capitalista e o conceito de “semi-periferia” elaborado por esse autor.
O problema do livro de Becker e Egler está justamente nessa opção. Wallerstein está entre os autores cujas teorias procuraram atribuir as mazelas dos países “periféricos” e “semi-periféricos “ à lógica do desenvolvimento capitalista, o que impõe aos diagnósticos que se baseiam em tais teorias um viés catastrofista que acaba distorcendo a história. Vejamos só um exemplo bem pontual de como isso acontece. Ao tratarem do processo de ocupação do território brasileiro, Becker e Egler afirmam:
“[...] o sertão é o palco de lutas históricas de resistência por aldeias indígenas, quilombos – locais de escravos refugiados, e territórios dos pobres. Foram dizimados” (Becker; Egler, 1992, p. 14 – tradução livre).
A publicação desse livro já tem cerca de vinte anos. Era o tempo em que a historiografia marxista e politicamente correta, empenhada em fazer a tal “história dos vencidos”, carregava nas tintas para mostrar que a ação dos colonizadores na América foi nada mais que um festival sangrento de genocídio e escravidão. E o sucesso desse tipo de interpretação histórica foi tanto que acabou levando à instituição de “políticas de reparação”. Nesse contexto, o Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica – Ciga, da Universidade de Brasília, tem se dedicado a identificar e mapear os “territórios quilombolas” contemporâneos. Em 2000, o primeiro cadastro municipal desses territórios registrava 1.388 deles, número que saltou para 2.228 em maio de 2005.
Ué, mas os quilombolas não tinham sido “dizimados”? Vai ver eles continuaram a procriar depois de mortos... Ou, quem sabe, eles resolveram se levantar da tumba não para comer os cérebros dos vivos, mas para tomar terras e receber dinheiro público. Nossos zumbis têm hábitos alimentares civilizados e são tão pragmáticos quanto aquele do Quilombo dos Palmares.
Ou talvez a explicação seja a de que algumas populações quilombolas foram dizimadas, mas a maioria delas não foi. Só que isso implica concluir que a existência de muitos quilombos acabou sendo tolerada pelo governo colonial e pelo império, de modo que seus habitantes foram, na prática, alforriados. E como os territórios quilombolas modernos já se contam aos milhares, conclui-se que a tolerância com escravos fugitivos era até que bem grande na história do Brasil. Mas, se for assim, qual é a reparação que lhes estaria sendo devida?
Essa história está é muito mal contada. E Rogério Haesbaert já deu uma dica bem óbvia de como se chega a isso. Ainda conto essa história, noutra hora.
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BECKER, B. K.; EGLER, C. Brazil: a new regional power in the world-economy. Cambridge, Cambridge University Press, 1992.
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