segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Comparar guerra com competição econômica é bobagem fácil e conveniente

Ontem, o canal Curta! reexibiu, pela enésima vez, o documentário Encontro com Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá, de Silvio Tendler. Honestamente, quem vê esse documentário nem precisa se dar ao trabalho de ler os livros que Milton Santos escreveu sobre globalização, os quais são tão superficiais quanto o documentário. Tais livros se resumem a repetir frases feitas contra a economia de mercado, não apresentando qualquer argumento lógico ou evidência empírica para sustentar suas críticas. 

Exemplo claro disso é quando Santos afirma que "a competitividade é um outro nome para a guerra, desta vez uma guerra planetária, conduzida, na prática, pelas multinacionais, as chancelarias, a burocracia internacional, e com o apoio, às vezes ostensivo, de intelectuais de dentro e de fora das universidades" (Santos, 1994, p. 35).


Essa afirmação é de uma banalidade que chega a ser constrangedora, pois a comparação entre competitividade e guerra é um chavão bastante utilizado nos debates públicos, e com diversos fins. Já no final dos anos 1990, Paul Krugman assinalava que a analogia entre comércio internacional e conflito militar se transformara no "[...] pensamento convencional entre os formuladores de política, líderes empresariais e intelectuais influentes [...]" (1999, p. 68) . 

Isso já chama a atenção para a superficialidade da visão de Milton Santos sobre a competição internacional, que se baseava numa metáfora útil à defesa de propostas e de interesses econômicos e políticos que, nos países desenvolvidos, não tinham relação nenhuma com o projeto socialista que esse autor considerava ser o único caminho que a humanidade poderia trilhar (Loch; Diniz Filho, 2014). A rigor, qualquer um que defenda a necessidade de uma intervenção mais ativa do Estado neste ou naquele setor da economia, independentemente de ser um socialista, um socialdemocrata, um nacionalista de direita ou de esquerda, ou mesmo um industrial temeroso com a exposição de sua empresa à concorrência internacional, pode usar uma retórica baseada na comparação entre economia mundial e disputa militar como justificativa para o seu pleito.

Para que o uso dessa metáfora banalizada significasse algo mais do que retórica esquerdista na obra de Milton Santos, seria necessário que ele construísse uma teoria sobre o funcionamento da economia internacional capaz de provar que as transações econômicas que se dão nessa escala constituem, necessariamente, um jogo de soma zero, ou seja, um sistema em que alguns países e classes sociais só podem ganhar se outros perderem. Todavia, ele nunca produziu qualquer teoria que fundamentasse tal visão, e eu desafio quem quer que seja a mostrar em qual trabalho Milton Santos teria elaborado uma teoria assim. Mesmo quem é marxista há de reconhecer que ele nunca produziu uma teoria que justificasse sua afirmação de que a globalização em curso é "perversa"!

A fama de Milton Santos entre acadêmicos, jornalistas e outros intelectuais vinha do fato de ele combinar ideologias de esquerda com discussões epistemológicas sobre o conceito de espaço recheadas com muitas citações de filósofos, sociólogos, geógrafos e até de linguistas. Como essas ideologias são aceitas pela maior parte da nossa intelectualidade como verdades evidentes por si mesmas, poucos se perguntavam de onde ele tirava suas conclusões. Assim, qualquer bobagem que ele afirmava sobre globalização, urbanização e outros temas correlatos soava aos seus leitores e ouvintes como se fosse produto de pesquisas bibliográficas extensas e de reflexões sofisticadas, quando não passavam de chavões que qualquer político ou militante de "movimento social" sabe repetir.

Postagens relacionadas

KRUGMAN, P. Internacionalismo pop. Rio de Janeiro: Campus; São Paulo: Publifolha, 1999.

LOCH, F. A. S.; DINIZ FILHO, L. L. O Brasil na globalização: crítica à perspectiva de Milton SantosRevista Geografar, v. 9, n. 1, p. 65-99, jun. 2014.

SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico-informacional. São Paulo: Hucitec, 1994 (Geografia: Teoria e Realidade, 25).

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