quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Ascensão e queda do PT provam que não vivemos numa "sociedade pós-verdade"

No texto anterior, comentei o conceito de "profunditude", que serve para identificar e desmascarar aqueles discursos que começam fisgando o leitor com a enunciação de uma verdade banal para depois enganá-lo ao extrair dali uma conclusão que, embora aparentemente profunda, é de uma falsidade completa. O escritor e jornalista científico Carlos Orsi, que explica esse conceito, comenta também outro que lhe é bem próximo: o conceito de "bullshit", formalizado pelo filósofo Harry Frankfurt. Com base nesse autor, Orsi define "bullshit" da seguinte forma:
[...] afirmação que é indiferente à verdade - algo que se diz para produzir uma reação emocional ou um comportamento desejado no ouvinte, sem que o emissor se importe se o que está dizendo corresponde ou não aos fatos. A bullshit pode até ser verdade, mas quem a emprega não está nem aí para isso: o que se deseja é que o alvo vote em alguém, compre alguma coisa, indigne-se com isto ou aquilo ou abrace uma causa (Cf.: Profunditudes e o mundo pós-verdade - itálico no original).

Assim como no caso da profunditude, temos aí um conceito que permite identificar uma quantidade imensa de afirmações usadas no âmbito político, sobretudo por populistas de esquerda e de direita. A maior parte de tudo o que Lula diz, para ficar só num exemplo, não passa de bullshit. O problema é que, se esses conceitos são úteis para a crítica de discursos, trazem consigo a tentação de serem aplicados para explicar fenômenos de massa. Vejamos o que diz Orsi: 
Nas últimas semanas, os fenômenos da bullshit e da profunditude viram-se lançados no âmago das discussões sobre o nosso momento histórico. Analisando eventos como a campanha eleitoral de Donald Trump nos Estados Unidos e a campanha bem-sucedida pelo Brexit, comentaristas como este articulista do New York Times expressam o temor de que tenhamos entrado num "mundo pós-verdade".
Nesse mundo, o respeito aos fatos e aos dados devidamente checados teria deixado de ser relevante no debate público: as pessoas estão dispostas a acreditar em qualquer bobagem que lhes confirme os preconceitos. Não têm mais paciência para ouvir os esclarecimentos e as admoestações de especialistas que sabem do que estão falando e, no limite, sequer para analisar a evidência dos próprios olhos. Trazendo o assunto para mais perto de casa, as críticas à redução da velocidade nas vias marginais da capital paulista são um claro fenômeno de uma sociedade pós-verdade. Talvez possamos somar a eleição de João Doria à lista de sinais dos tempos?
Debate
Na sequência, Orsi apresenta os argumentos de jornalistas que rebatem a ideia de que estejamos vivendo no tal mundo "pós-verdade". Mas tais argumentos não tocam no ponto realmente nevrálgico do problema, ao meu ver. De fato, certos críticos acusam essa visão de ser elitista, pois supõe haver um grupo de especialistas e políticos que debate os problemas a sério dentro dos gabinetes de governo enquanto deixa a comunicação com as massas a cargo de marqueteiros que só lhes oferecem profunditudes e bullshit, já que estas não querem saber de complicações técnicas.

Faz sentido, mas o problema maior, ao meu ver, é o seguinte: conceitos como esses, se aplicados para explicar fenômenos de massa, estimulam a tendência que todas as pessoas têm, em maior ou menor grau, de achar que as opiniões que contradizem fortemente as suas convicções só podem ser idiotices descoladas dos fatos. O próprio Carlos Orsi incide nesse erro, como se vê no momento em que se pergunta se a eleição de João Doria Júnior não poderia ser um sintoma da sociedade "pós-verdade".

Ora, eu não conheço nada das opiniões políticas desse autor. Não sei se ele é petista, tucano ou o que seja. Mas está claro que, na opinião dele, votar em Doria é uma burrice, uma reação emocional a discursos feitos só de profunditudes e bullshit. Eu, porém, discordo totalmente: se eu votasse em São Paulo, votaria em Doria. E vejo várias razões de ordem factual para sustentar essa opção. E ainda que fosse só para fazer voto útil contra um petista e duas ex-petistas, seria um voto plenamente defensável à luz dos fatos. Afinal, as gestões Haddad, Marta e Erundina foram péssimas, e o PT fez um governo desastroso em nível federal. Será que "mensalão", "petrolão" e a crise econômica atual não são fatos que justificam o sentimento anti-petista que dominou a última eleição municipal?

Beto Richa e Lula 
E não estou sugerindo que acerto sempre. Votei em Beto Richa e me arrependi, pois ele fez um governo que é uma mistura de Dilma com Sarney! Mas me arrependi por avaliar fatos bem concretos: esse senhor manteve os gastos públicos elevados num contexto de queda da arrecadação só para se reeleger e, depois, atrasou pagamentos aos funcionários alegando falta de dinheiro, além de permitir que a inflação vá agora corroendo os salários do funcionalismo para fazê-los caber no orçamento.

E também os eleitores de baixa escolaridade e pouco interessados em política se baseiam em certos fatos, mesmo quando erram feio: os fatos do aqui e agora. Conforme eu já comentei neste blog, pessoas de baixa escolaridade, embora sejam bastante racionais ao tomarem decisões econômicas no âmbito de suas vidas privadas, tendem a votar de forma equivocada por ignorarem completamente as causas de fenômenos como o aumento da inflação. Mas elas sabem, sim, se está fácil ou difícil manter ou arranjar emprego, sabem se estão conseguindo consumir mais ou menos.

É isso que explica a ascensão e queda do PT. Quando Lula chegou ao poder, jogou no lixo tudo o que o PT defendeu durante vinte anos e deu continuidade à política econômica de FHC. Como o cenário internacional foi extremamente favorável nos anos 2003-2011, grande parte dos eleitores atribuiu a Lula méritos que ele nunca teve. Tanto que a maioria até relevou os fatos que trouxeram à tona o mar de lama que foi o "mensalão". Esses eleitores não viram que o Brasil cresceu apesar do PT e nem que as políticas irresponsáveis de Lula e Dilma estimularam o consumo e inibiram o investimento, destruindo as condições materiais que garantiriam um crescimento sustentado no longo prazo. Mas nem por isso podemos dizer que eles se deixaram levar apenas pelas torrentes de bullshit que saem da boca de Lula, já que a melhora do padrão de consumo da população de baixa renda foi um fato naqueles anos. Do mesmo modo, quando Dilma resolveu abandonar a política econômica de FHC e jogou o país numa estagflação (e tudo isso somado às revelações da Lava Jato) não houve marqueteiro, Marilena Chaui ou Luis Nassif que segurasse as pontas com suas profunditudes e bullshit: o desastre eleitoral foi inevitável.  

Conclusão
Os conceitos de profunditude e de bullshit têm sua utilidade para a crítica de discursos científicos, políticos e propagandísticos, especialmente quando se trata de certos intelectuais e políticos que, ideologicamente cegos, teimam em defender ideias fracassadas, como o socialismo, contra todas as evidências. Mas não faz o menor sentido aplicá-los para explicar o comportamento coletivo, mesmo quando se trata daqueles milhões que têm pouca paciência para ler sobre política e economia. Mesmo quando erram feio (e isso é frequente), esses eleitores avaliam se suas vidas estão melhorando ou piorando, se as coisas estão mais fáceis ou mais difíceis. Então, qualquer grupo que tentar se eternizar no poder só com base em suborno e artifícios de retórica vai sucumbir quando a incompetência, a corrupção e as ideologias retrógradas cobrarem seu preço na forma de uma queda da qualidade de vida perceptível para aqueles eleitores de baixa escolaridade e/ou voluntariamente desinformados.

7 comentários:

  1. Ao ler o texto anterior sobre 'profunditude' e agora esse sobre 'bullshit', não pude deixar de me lembrar de certos 'slogans' vazios de conteúdos, mas com forte apelo emocional (para certas pessoas, é importante frisar, e não para qualquer sujeito que tenha o mínimo de discernimento), que grassam nas Ciências Humanas e Sociais. Tornou-se moda dizer que 'a ciência é a política por outros meios', que 'todo saber é político', que 'o ato educativo é um ato político', que 'não se transmite conhecimento, mas se constrói', dentre outras frases de efeito. Da mesma forma, criticam-se as 'pesquisas positivistas' (mesmo que não se entenda o que é o positivismo), o 'viés de gênero' na ciência, o conhecimento 'branco, masculino, heterossexual, cristão e de classe média'... Dada a ligação da academia com o 'pensamento' de esquerda, não pude deixar de estabelecer essas ligações.
    Como sempre, excelente postagem! Parabéns!

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    1. Concordo com você, Jonathan. Muito do que se diz nas ciências humanas e sociais hoje em dia não passa de chavões facilmente classificáveis como profunditude ou bullshit. E, se relermos os livros de Paulo Freire à luz desses conceitos, também não será difícil perceber que esse demagogo (não pedagogo) era um mestre na produção de profunditudes e de bullshit.

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  2. Muito bom, difícil ser mais didático que isso.

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    1. Que bom que você gostou, Anselmo. Achei que ficou muito longo, mas, sempre que eu pensava em cortar alguma coisa, avaliava que prejudicaria a exposição.

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  3. Diniz, com blog eu já desisti de padronizar... Vez que outra resolvo escrever um artigão, mas se eu me obrigar a isto, não sai mesmo. Então, adotei um padrão de diário para o meu blog, escrevo o que me dá na telha. E sabe que é bom? Porque aquela ideia, por vezes imatura, evolui com o tempo e pode virar coisa boa, pois a tela também acaba funcionando como uma espécie de "arquivo vivo". Claro que se não tivermos muita certeza de algo, melhor deixar em espera (achando ter certeza já erramos...), mas com relação à mera opinião, não vejo porque não publicar. Abraço

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  4. Muito bom texto! Muito boa a colocação do Jonathan!

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