domingo, 19 de abril de 2020

Atila Iamarino errou, mas finge que acertou?

Um vídeo do epidemiologista Atila Iamarino que vem sendo bastante compartilhado nas redes sociais faz uma comparação das estatísticas do Brasil, EUA, Itália, Espanha, França e Reino Unido e, com base nesses números e em projeções, conclui que o Brasil exibe bem menos mortes registradas do que os outros porque foi bem rápido em tomar medidas de isolamento (aqui). A primeira conclusão a extrair dessa fala é que Iamarino teria acertado, no mês de março, quando afirmou que a epidemia se espalhava aqui tão depressa quanto na Itália ou EUA e que medidas de supressão deveriam ser tomadas o quanto antes, e prolongadas por vários meses, para evitar uma hecatombe. A segunda conclusão é que os fatores mais importantes para explicar o grau de sucesso de um país no combate à pandemia seriam a precocidade e intensidade das medidas de isolamento adotadas.

Bem, é chato dizer, mas o que esse autor andou escrevendo no Twitter em 13 de março indica que, na visão dele, o Brasil já havia perdido a chance de se antecipar:
Nós tivemos 2 meses pra ver o que aconteceu com a China (e menosprezar por ser outra cultura), 1 mês pra ver o que aconteceu com a Itália e Japão. Já poderíamos ter planejado fechamento de escola, ajuda com empresa pra mandar gente pra casa, treinado as pessoas pra se afastarem.
10:44 PM · 13 de mar de 2020 (aqui
Não aproveitamos a oportunidade, provavelmente pelo bem da economia e para não gerar pânico de mercado. Vamos ver o caminho onde entramos. Não deixem as pessoas culparem o vírus lá na frente. Isso não aconteceu, isso foi decidido.
10:44 PM · 13 de mar de 2020 (aqui)
No dia 18 de março, Iamarino usou uma pesquisa do Imperial College of London para, por meio da extrapolação dos dados sobre os EUA para a realidade brasileira, traçar os seguintes cenários (aqui):
  • Se nada fosse feito, haveria 1,4 milhões de mortos pelo coronavírus no Brasil até agosto de 2020 e 2,6 milhões de mortos devido ao colapso do sistema de saúde, já que a demanda por leitos hospitalares, UTIs e por respiradores ultrapassaria em muitas vezes a capacidade de atendimento.
  • Já o "melhor cenário de mitigação" seria "[...] todo mundo com sintomas é isolado em casa, a família é quarentenada e isolamos idosos com mais de 70 anos";"[...] ainda faltam leitos, o que dobra a mortalidade. Extrapolando essa situação pro Brasil (sem levar em conta a proporção de idosos aqui) seria o equivalente a ainda ter mais de 1 milhão de brasileiros mortos até o fim de agosto".
  • "A única forma de diminuir drasticamente as mortes pela simulação seria a supressão: escolas e universidades fechadas, idosos isolados, casos sintomáticos e familiares isolados e a maior parte dos locais públicos ou com muita gente (como trabalho) fechados".
  • "Nesse cenário, a maior parte das pessoas se salvam. Temos alguns milhares de mortos por algumas semanas, mas os casos caem. Quase todo mundo que precisa de UTI é tratado. Sem milhões de mortes. MAS se suspender a supressão, casos explodem e milhões de mortes de novo".
Ora, se essas previsões de meados de março estivessem corretas, Iamarino jamais poderia falar agora como se o Brasil fosse um exemplo para o mundo, o país que agiu rápido e com muita firmeza para salvar vidas. Afinal, nós não isolamos a população idosa, não isolamos os infectados e nem suas famílias. Para isso, teríamos de fazer testes em massa para identificar os doentes (sintomáticos e assintomáticos), mas o Brasil efetua apenas 269 testes por milhão de habitantes. Portanto, é ponto pacífico que o Brasil não aplicou a política de supressão recomendada por Iamarino. O que fizemos (com diferenças entre estados) foi uma política de distanciamento social sem o reforço do isolamento daqueles grupos.

Mas será que, apesar disso, tais medidas de distanciamento não teriam sido rápidas e rígidas o bastante para nos aproximarmos da supressão? Bem, o presidente Bolsonaro declarou que o covid-19 é "só uma gripinha" e, sendo assim, não declarou quarentena nacional e nem sequer restringiu a entrada de pessoas vindas do exterior pelos aeroportos, mesmo em se tratando de viajantes provenientes de países muito atingidos pela epidemia, como EUA e Itália. Esse governo até bloqueou algumas iniciativas estaduais, pois a Anvisa entrou na justiça para impedir alguns governadores de aplicarem uma política de medir a febre de pessoas chegadas do exterior nos aeroportos. Em função disso, a epidemia já havia chegado até a aldeias indígenas no dia 30 de março (aqui).  

Devido à inação do governo federal, as medidas de distanciamento foram sendo implantadas de forma progressiva e descoordenada, à semelhança do que aconteceu nos EUA, onde governadores foram implantando medidas mais rígidas do que aquelas tomadas por Trump. No dia 16 de março, a imprensa anunciava que as medidas de isolamento se restringiam a "alguns estados", como São Paulo (aqui). Não é à toa que, três dias antes, Iamarino tuitava que não estávamos aproveitando a oportunidade. Em 27 de março, os governadores de Santa Catarina, Mato Grosso e Rondônia anunciavam que iriam permitir a reabertura de algumas atividades de comércio e serviços, enquanto a grande maioria dos governadores declarava que as restrições seriam mantidas (aqui). 

Em face da descoordenação, é preciso contar com a tecnologia para tentar conhecer a efetividade das medidas de restrição por estado e na média nacional. No dia 02 de abril, a imprensa informava que, segundo levantamento feito por uma empresa de software de geolocalização aplicado a smartphones, a média nacional de pessoas em casa era de 58,3% (aqui). Se esse levantamento for razoavelmente preciso, significa que cerca de 40% da população não estava propriamente isolada até começo de abril, de modo que as medidas de distanciamento social aplicadas no Brasil não foram precoces e ficaram muito aquém do que foi recomendado por Atila Iamarino para evitar que o Brasil repetisse o desastre italiano.

Portanto, o caso brasileiro depõe contra a segunda conclusão mencionada acima, isto é, a de que a precocidade e intensidade das medidas de isolamento são os fatores mais importantes para explicar o grau de sucesso alcançado por cada país. Mas seria o Brasil o único ponto fora da curva? 

Não. Poderíamos citar também o caso japonês. Até o dia 24 de março, o governo japonês não havia nem sequer proibido as pessoas de saírem às ruas, embora a doença já tivesse chegado ao país havia cerca de dois meses - antes de ter chegado à Europa, portanto (aqui). Foi só em 07 de abril que o governo desse país decidiu declarar estado de emergência. Mesmo assim, o Japão registrou pouquíssimos óbitos diários nos meses de janeiro até começo de abril, e acumulava apenas 85 mortes naquela data. De outro lado, Itália, Espanha e França implantaram medidas duras de quarentena entre os dias 09 e 17 de março, mas, ainda assim, amargaram centenas de óbitos por dia dali até 12 de abril, acumulando milhares de mortes cada um (aqui).

Qual é a explicação que Atila Iamarino dá ao caso japonês no vídeo citado acima? Nenhuma, pois os gráficos que ele mostrou não incluíam o Japão. A impressão que fica é que o autor selecionou apenas os casos que supostamente confirmam sua teoria e ignorou os casos que não se encaixam. Um artifício válido nos campos do direito e da política, em que se trabalha com a retórica, mas não no campo científico, no qual é preciso levar em conta todos os casos.

Cientistas e professores odeiam quando pessoas leigas num assunto preferem dar ouvidos a jornalistas e políticos que confirmam as convicções delas ao invés de confiarem nos especialistas. Mas, quando até um leigo em epidemiologia, como é o meu caso, consegue perceber pela análise dos fatos que um cientista de currículo reconhecido pode estar se contradizendo e filtrando informações, fica difícil deixar de pensar que aquela atitude de desconfiança de boa parte do público é estimulada pela forma como alguns cientistas participam dos debates públicos.

P.S. - Obviamente, não nego que medidas de isolamento salvam vidas. A questão é que precisamos conhecer bem as causas das diferenças de desempenho entre países para calibrar essas medidas (ver abaixo). Afinal, é inconteste que distanciamento social diminui as taxas de infecção e de mortalidade, mas é igualmente inconteste que distanciamento gera recessão e que recessão também mata.

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