sexta-feira, 24 de abril de 2020

Cientista responsável é o que informa ou o que assusta?

O Observatório Covid-19 BR é um grupo interdisciplinar e independente de cientistas que se dispõem a reunir informações oficiais sobre a pandemia no Brasil e a tratar essas informações com o uso de métodos estatísticos e de modelos matemáticos elaborados por epidemiologistas. Seus objetivos são: fornecer informações úteis para o planejamento das políticas públicas e também "informar a população a partir de um ponto de vista científico" (aqui).

No dia 20 de março de 2020, a imprensa apresentou alguns dos primeiros resultados do trabalho do Observatório. Ficamos assim sabendo que o "ritmo de contágio do coronavírus no Brasil está igual ao registrado na Itália e acelerando". Além disso, os cientistas calcularam que o número de casos da doença, no Brasil, apresentava a tendência de dobrar a cada 54 horas e 43 minutos (aqui)!

Todavia, essa primeira projeção não se confirmou (aqui), e parece já existir um consenso de que o vírus não vem se propagando no Brasil no mesmo ritmo em que isso se deu nos países mais afetados - EUA, Itália, Espanha, França e Reino Unido -, e que o número de mortes diárias pelo covid-19 está também bem mais baixo do que nesses países. O epidemiologista Atila Iamarino, que trabalhou com uma projeção equivocada como aquela em março, já reconheceu que o Brasil está em situação bem melhor, por enquanto (aqui)[*].

Mas isso não significa que o Observatório tenha feito um trabalho incompetente. Os cientistas não dispõem de um conhecimento completo dos muitos fatores que afetam as taxas de infeção, morbidade e de mortalidade desse vírus em cada país, de modo que as projeções podem falhar e ser corrigidas mais tarde à luz de novas informações. Os cálculos divulgados pelo Observatório poucos dias depois indicavam que, em 23 de março, o tempo de duplicação do número de casos era um pouco maior, chegando a 62 horas (aqui). Mas e hoje? Ao acessar o site do Observatório, em 23 de abril, deparei-me com esse pequeno texto: 
No momento não é possível estimar tempos de duplicação da epidemia, pois há um enorme acúmulo de testes moleculares sem resultados, necessários para que os casos sejam confirmados e notificados. Essa demora faz com que os números disponíveis publicamente (número de notificações) cresça de maneira artificialmente lenta.
Assim, a evolução dos números oficiais informa hoje sobre a dinâmica de notificação, não da epidemia. Seria irresponsável seguir divulgando medidas de propagação da epidemia no Brasil com esses números (aqui).
Todos sabem que os números de casos e de mortes são subnotificados, mas não são menos subnotificados hoje do que eram há pouco mais de um mês, quando o Observatório usou os dados oficiais para calcular a velocidade de duplicação de casos com precisão de minutos! Por que antes era responsável calcular o tempo de duplicação e divulgar o resultado, mas hoje não é mais? Por que os primeiros dados oficiais permitiam fazer cálculos que projetavam uma catástrofe, mas agora os mesmos dados oficiais, já melhorados, revelam que a epidemia não se propaga  tão depressa quanto se pensava?[**]

Ao que parece, os cientistas que integram o Observatório acreditam que a responsabilidade deles está em mostrar o cenário mais tenebroso possível para convencer a opinião pública e as autoridades de que as medidas de isolamento precisam ser precoces, rígidas e bastante prolongadas. Se for esse o caso, trata-se de uma postura ética bastante questionável, independentemente de que tais medidas sejam realmente as melhores ou não. Afinal, segundo o filósofo Karl Popper, o compromisso do cientista está na sua atitude pessoal em relação à verdade. Nesse sentido, não é aceitável que cientistas de certas áreas filtrem informações com o fim de criar um efeito psicológico na opinião pública e nas autoridades que as induza a tomar as decisões que esses cientistas julgam ser as melhores. A responsabilidade do cientista reside no compromisso de produzir conhecimentos objetivos sobre os fenômenos e de divulgar esses conhecimentos para que cientistas de outras áreas, além de políticos, juristas, jornalistas e a opinião pública debatam o que fazer com base nesse conhecimento.

Por fim, mas não menos importante: se os cientistas se preocuparem com os efeitos políticos do conhecimento que divulgam ao ponto de filtrarem informações e/ou de não admitirem erros que são inerentes ao trabalho científico, o efeito disso em parte da opinião pública pode ser extremamente danoso para a própria ciência. Afinal, como os cientistas e professores poderão reclamar quando virem que parte da opinião pública prefere dar ouvidos a jornalistas e políticos que confirmam suas convicções sobre determinado assunto ao invés de confiarem na palavra dos especialistas se existirem exemplos concretos de cientistas que filtram informações com o objetivo de alterar as decisões políticas? 

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[*] Iamarino explica a melhor situação brasileira afirmando que nossas autoridades foram precavidas e agiram cedo (sic!), o que contraria o que ele mesmo dizia em 13 de março e não é sustentável à luz dos fatos (aqui).
[**] Os dados atuais sobre número de óbitos por dia são melhores do que os disponíveis quando o Observatório fez suas primeiras projeções. Isso porque há uma defasagem de vários dias entre o registro de óbito e a entrada dessa informação nas estatísticas do Ministério da Saúde, o qual vai corrigindo os dados sobre óbitos diários conforme as informações vão sendo consolidadas (aqui).

2 comentários:

  1. Vindo aqui em agosto dizer que já são mais de 90.000 mortos (com subnotificação)e que você estava MUITO errado. Você é doente. Está nego na sua própria ideologia

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    1. Faça as contas. Se a doença se espalhasse no Brasil com a velocidade calculada inicialmente pelo Observatório, pelo Atila Iamarino e pelo Imperial College of London, nós já teríamos atingido 90 mil mortos meses atrás. Por que ficamos tão abaixo do número que eles projetaram? Não foi por termos agido rápido (o Bolsonaro nem sequer agiu e ainda atrapalhou quem fez alguma coisa). Não foi por que tomamos medidas rígidas de quarentena, pois as medidas foram brandas em comparação com as recomendadas por esses especialistas (veja os links abaixo). Logo, a conclusão é que esses especialistas exageraram de propósito para assustar a população e induzir os tomadores de decisão a fazer o eles achavam que deveria ser feito. Mas cientistas têm de manter um compromisso ético com a objetividade do conhecimento, tanto na fase da produção quanto na divulgação.

      Portanto, eu não estou cego pela ideologia. Estou apenas respeitando a matemática e os fatos. E são a matemática e os fatos que provam que certos especialistas andaram exagerando muito ao fazer projeções.

      https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-03-31/lento-e-sem-testes-brasil-escolhe-a-roleta-russa-do-coronavirus.html?ssm=FB_BR_CM&fbclid=IwAR1vS3CyYbcGda-FR2BkGeUlbAKABKEA8kulWb2EA5880DW7gvdDecgnyHQ

      https://www.msn.com/pt-br/noticias/brasil/paulistanos-desrespeitam-a-quarentena-por-toda-a-cidade/ar-BB14s20j?li=AAF8EJj&ocid=spartan-ntp-feeds#image=BB14s20j_1|1

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