terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Insegurança alimentar: conceito enganoso

Lula e o PT sempre usaram a mentira de que o Brasil tem muitos milhões de pessoas passando fome para justificar seu marketing político. Daí que o governo Lula 1 ficou numa posição incômoda após a publicação da Pesquisa de Orçamentos Familiares 2002-2003 – POF, do IBGE. Essa pesquisa jogou por terra o argumento de que o Brasil precisaria investir bilhões em programas como o Fome Zero - o qual nem sequer saiu do papel. No período da pesquisa, a exposição à desnutrição era estatisticamente irrelevante entre os adultos do sexo masculino e atingia somente um pequeno percentual de mulheres da área rural do Nordeste e do estrato mais pobre da população brasileira. Mais tarde, a edição da POF para os anos 2008-2009 confirmou a baixíssima magnitude da exposição à desnutrição no Brasil, bem como os elevados percentuais de pessoas com excesso de peso e obesidade, inclusive nos extratos de renda mais baixos (referências abaixo).  

Mas a reação governamental aos dados inconvenientes veio já em 2004, com um suplemento especial da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, sobre Segurança Alimentar. O problema é que há um paradoxo entre a POF e a PNAD 2004, pois a primeira pesquisa revela que há uma exposição muito baixa da população adulta à desnutrição, ao passo que a segunda registrou cerca de 14 milhões de pessoas passando fome. 

O contraste salta aos olhos principalmente quando se considera o estrato mais pobre da população, que possui rendimento domiciliar per capita de até um quarto do salário mínimo. A POF registra que, no período 2002-2003, não havia exposição relevante dos homens desse grupo à desnutrição, já que o percentual deles com déficit de peso era inferior a 5%, nível considerado normal em qualquer população. Em contraste, nada menos que 24,0% dos homens desse estrato mais pobre apresentava excesso de peso ou obesidade. No caso da população feminina desse estrato, o déficit de peso atingia um percentual apenas 3,5% acima do limite de 5% considerado normal, enquanto 40,9% das mulheres se encontravam com excesso de peso ou obesidade! Contudo, os dados do suplemento da PNAD 2004 registravam que 83,4% da população total do estrato mais pobre estavam em situação de insegurança alimentar leve, moderada ou grave. A conclusão óbvia da comparação desses resultados é que a PNAD 2004 classificou como moradores de domicílios em estado de insegurança alimentar pessoas com excesso de peso ou talvez até obesidade. Como se explica isso?

Bem, a diferença fundamental entre as duas pesquisas é que as informações da PNAD derivam de declarações de pessoas entrevistadas, enquanto as da POF se baseiam na aferição do Índice de Massa Corporal – IMC, e no acompanhamento direto da disponibilidade de alimentos dentro dos domicílios. Portanto, o conceito de segurança alimentar se refere à percepção que os indivíduos têm a respeito de sua alimentação, sem considerar informações diretas sobre o seu estado nutricional. Mas ocorre que a percepção das pessoas sobre a qualidade de sua alimentação é eivada de valores culturais e sociais, de modo que a população de baixa renda tende a imitar os hábitos de consumo dos estratos de renda mais elevada. Indivíduos de baixa renda tendem a avaliar que a alimentação de suas famílias é insuficiente e pouco variada porque só às vezes inclui iogurte, carne bovina e outros alimentos consumidos com maior frequência por pessoas de renda mais alta, muito embora o consumo rotineiro de arroz, feijão, carne de frango e leite dessas famílias esteja de acordo com as recomendações nutricionais da Organização Mundial de Saúde – OMS. Assim, para identificar os casos em que os indivíduos pesquisados podem realmente apresentar problemas de saúde relacionados à alimentação, a POF utiliza os conceitos de desnutrição, excesso de peso e obesidade, sendo o primeiro definido como o quadro clínico característico do consumo insuficiente de calorias e os outros dois como os quadros que derivam do consumo excessivo. E a medida usada para avaliar esses três estados é o cálculo do IMC, conforme parâmetros da OMS. Já o suplemento da PNAD 2004 não consegue identificar problemas nutricionais, pois o conceito de segurança alimentar não se baseia em critérios clínicos.

Até mesmo o conceito de fome usado na pesquisa de segurança alimentar é psicológico, pois diz respeito à “condição definida como uma sensação de ansiedade e desconforto provocada pela falta de comida”. Por exemplo, se o entrevistado afirma que, nos noventa dias anteriores à entrevista, sentiu fome pelo menos uma vez, mas não comeu por falta de dinheiro, então se considera que ele passou fome, mesmo que não apresente déficit de peso. Aliás, pelos critérios dessa pesquisa, os conceitos de insegurança alimentar moderada e grave, embora indiquem “limitação de acesso quantitativo aos alimentos”, podem ocorrer “com ou sem o convívio com situação de fome” - sic! Considera-se que há falta de comida num domicílio mesmo quando os moradores têm peso normal ou excessivo e não passam fome, mas também não comem tudo o que gostariam ou acham que deveriam comer. Ou seja, a pesquisa considera que há insegurança alimentar moderada ou grave em domicílios onde os moradores não conseguem ficar gordos ou engordar ainda mais!

Sendo assim, não se pode usar as informações sobre segurança alimentar para dizer que há pessoas com problemas de saúde por falta de comida, pois esse tipo de pesquisa não afere isso. Fica evidente a incoerência dessa pesquisa, pois ao usar o termo “insegurança”, denota uma situação de risco à saúde relacionada ao consumo de alimentos, algo que só poderia ser aferido com base em critérios clínicos que a pesquisa não leva em conta. Ora, o estudo que utiliza critérios clínicos é a POF, justamente a pesquisa que mostra a baixa magnitude das situações de déficit de peso na população brasileira, mesmo a mais pobre.

A verdade é que levantamentos sobre segurança alimentar servem apenas para justificar o marketing montado em torno de programas de combate à fome num país em que a desnutrição já está quase completamente eliminada. Daí porque o governo encomendou ao IBGE uma pesquisa que utiliza conceitos de fome e de insegurança alimentar próprios para estudar países desenvolvidos (como os EUA, que já possuem programas de auxílio alimentação desde os anos 1930), e outros que, como o Brasil, já avançaram muito em termos de renda per capita, industrialização e modernização agrícola. Quer dizer, conceitos adequados para países em que a desnutrição é inexistente ou quase inexistente, mas onde há pessoas que não conseguem reproduzir o padrão alimentar que elas, mesmo quando já estão acima do IMC recomendado, julgam que as pessoas de renda mais alta têm.

Pesquisa de encomenda

Todavia, ainda há outra razão para o paradoxo entre os resultados das pesquisas sobre desnutrição e sobre segurança alimentar. O jornalista Ali Kamel, no livro Não somos racistas (Record, 2006), efetuou uma crítica competente à metodologia do suplemento da PNAD 2004. Essa pesquisa usou um conceito ambíguo de segurança alimentar (embora equivalente ao utilizado em outros países) e coletou dados por meio de um questionário repleto de perguntas mal redigidas e com poucas informações que orientassem os entrevistadores de modo a evitar interpretações subjetivas das respostas. Vale a pena citar um dos exemplos hipotéticos que Kamel elaborou para ilustrar como as perguntas do questionário superestimam as situações de fome:

“Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou mais de idade, alguma vez, sentiu fome mas não comeu porque não havia dinheiro para comprar comida?”. “Sim”, seria a resposta de alguém que, no fim da tarde, deixasse de comer um sanduíche no McDonald’s, porque o dinheiro está curto, sendo obrigado a matar a fome no jantar, em casa.

Em suma, temos três conclusões: o conceito de segurança alimentar é incoerente com a metodologia usada nas pesquisas sobre esse tema; o questionário do suplemento especial da PNAD 2004 é problemático; e a eficácia dos indicadores dessa pesquisa é facilmente contestada pelos estudos baseados em critérios clínicos, os únicos que podem realmente aferir se há pessoas com a saúde em risco por falta de comida. 

Por aí se vê o empenho do PT em produzir números que sustentem o mito de que o Brasil é um país repleto de famintos. Recentemente, em Davos, Marina Silva teve o desplante de dizer que, no Brasil, existem 120 milhões de pessoas sujeitas à fome! Nesse caso, é mentira descarada mesmo, sem qualquer pudor, típica do padrão petista de mentir repetidamente até que a mentira vire verdade.

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Referências

IBGE. Pesquisa de orçamentos familiares 2002-2003: análise da disponibilidade domiciliar de alimentos e do estado nutricional no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2004.

______. Pesquisa de orçamentos familiares 2002-2003: antropometria e análise do estado nutricional de crianças e adolescentes no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2006.

______. Pesquisa nacional por amostra de domicílio: segurança alimentar 2004. Rio de Janeiro: IBGE, 2006a

IBGE. Pesquisa de orçamentos familiares 2008-2009: antropometria e estado nutricional de crianças, adolescentes e adultos no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.

KAMEL, A. Não somos racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

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