sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Nossos intelectuais não pedem demissão!

Fui à biblioteca pegar um livro de epistemologia e acabei descobrindo um outro sobre o mesmo assunto cujo título me chamou atenção. Trata-se de A demissão dos intelectuais: a crise das ciências sociais e o esquecimento do factor político, escrito por Alain Caillé. O autor é um desses intelectuais franceses de esquerda inconformados com o que consideram ser uma despolitização das ciências sociais e da filosofia, a qual teria ocorrido principalmente a partir dos anos 1980. Logo na Introdução, ele explica:
[…] os especialistas das ciências sociais, da história e da filosofia política – os sábios, numa palavra – desistiram em massa de pensar o seu tempo. E, mais ainda, de agir através do desempenho do seu papel no esclarecimento e no despertar da consciência coletiva, da sua responsabilidade de dizer o possível e o desejável (s.d., p. 11).
Essa passagem já revela muita coisa sobre a importância que os intelectuais de esquerda conferem a si mesmos. Seguindo aquele chavão marxista de que os filósofos não devem se limitar à explicação do mundo, já que lhes cumpriria transformá-lo, esses autores acham que o seu papel é construir grandes interpretações de conjunto sobre a sociedade para levar as pessoas ao “despertar da consciência coletiva”! Quem muda a história são as massas oprimidas, é claro, mas, sem esse “esclarecimento” oferecido pelos intelectuais engajados... Parece-me que tal pretensão é uma boa pista para entender por que tantos intelectuais são atraídos pelas teorias críticas do capitalismo e negadoras de que o cientista deva ter compromisso com a neutralidade ideológica e de valores. 

No entanto, é claro que algum estudante brasileiro de ciências sociais ou um leitor qualquer da Folha de São Paulo poderia se perguntar: “ué, mas quem disse que os intelectuais se demitiram da função de pensar nosso tempo? Autores radicais como Francisco de Oliveira, Marilena Chaui, Maria da Conceição Tavares, José Luis Fiori, Paulo Arantes, Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, entre outros, não continuam intervindo ativamente nos debates públicos das grandes questões nacionais e internacionais? Não continuam assinando manifestos, publicando artigos nos jornais e dando entrevistas sobre o que está errado e o que pode ser feito para melhorar a economia e a sociedade?”. 

Mas o próprio autor responde a questionamentos desse tipo, dizendo: 
Como é que se pode deplorar e denunciar o esquecimento do fator político pelas ciências sociais e pela filosofia quando, todos os dias, ou quase, a segunda página do Le Monde e a quinta do Libération nos oferecem uma ampla colheita de considerações políticas e éticas enunciadas pelos melhores espíritos da sociologia e da filosofia? […]
E mesmo que não tenhamos nenhumas outras receitas a propor, além das habituais nas páginas “Ideias” dos nossos jornais favoritos, parece-nos que isso não deve impedir a constatação de um sentimento de impotência geral. Todos denunciam o peso excessivo do poder do dinheiro e a insuficiente representatividade do sistema representativo. Mas não vemos que via de ação, ou mesmo simplesmente de reflexão, é proposta aos nossos concidadãos, a começar pelos mais jovens (Caillé, s.d., p. 11-12).
Na sequência, o autor reclama que esses intelectuais que pensam o nosso tempo estão ficando cada vez mais excluídos dos debates e que têm menor influência em seus respectivos campos disciplinares do que seria de imaginar à luz da projeção que encontram na imprensa. Para o momento, porém, quero destacar apenas que, como se vê na passagem citada, embora os intelectuais de esquerda tenham considerável projeção pública, a despolitização da academia se relaciona à “impotência geral” desses autores para elaborar propostas de ação ou mesmo de reflexão.

Ora, essa é exatamente uma das ideais que tenho defendido neste blog! Mas há uma diferença abissal entre Caillé e eu. Ele constata a impotência propositiva dos intelectuais que desejam mudar o mundo e lamenta que inúmeros estudiosos da sociedade tenham decidido investir em pesquisas mais pontuais e privilegiar métodos empíricos e quantitativos aplicados à modelagem matemática (daí ele falar em despolitização). Eu, porém, vejo nisso um processo absolutamente normal e bem-vindo em qualquer ciência, que é a substituição de métodos e teorias que se mostraram ineficazes por outros métodos e teorias de maior eficiência explicativa. E, se os pesquisadores mais jovens utilizam tais métodos para serem fiéis ao compromisso com a neutralidade política, tanto melhor! A dissolução das fronteiras entre método científico e retórica política está na base do fracasso dos intelectuais que Caillé admira. 

E há também uma grande diferença entre a Europa e o Brasil. Nas ciências sociais brasileiras, o pensamento marxista continua bem mais influente do que na Europa. Gente como Marilena Chaui e Maria da Conceição Tavares ocupa muito espaço em jornais como a Folha, mas vivem metendo os pés pelas mãos em suas análises, além de não serem capazes de fazer propostas que sejam ao mesmo tempo radicais e factíveis. São pessoas mal acostumadas pela bajulação cega de acadêmicos e de grande parte da imprensa. Por isso eles nunca pedem demissão, assim como os intelectuais franceses que frequentam as páginas de jornais esquerdistas como o Le Monde

Como antídoto a esse estado de coisas, vou expor uns furos históricos e exemplos de retórica falseadora de alguns desses ilustres intelectuais acima citados nos próximos posts. 

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CAILLÉ, A. A demissão dos intelectuais: a crise das ciências sociais e o esquecimento do factor político. Lisboa: Instituto Piaget, s.d. (Coleção Epistemologia e Sociedade, 67). 

OBS.: Essa edição não informa o ano de publicação, mas a edição francesa é de 1993.

2 comentários:

  1. Também é fácil para este grupo de intelectuais engajados se apoiar nisto, na ação em detrimento do entendimento porque mascara a falta ou dificuldade de desenvolverem pesquisas sérias sobre qualquer coisa.

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  2. É verdade. Vemos isso quando o autor diz que é dever do intelectual falar sobre "o possível e o desejável". Como se faz pesquisa científica para estabelecer o que é "desejável"? Reflexão filosófica sobre o que deve ser desejável para todos, vá lá, mas como a pesquisa em ciência social vai estabelecer isso? O marxismo era uma proposta de socialismo científico, e deu no que deu. E como legitimar os resultados de uma pesquisa que toma um discurso filosófico sobre o que é desejável como conclusão estabelecida a priori? Autores como Caillé qualificam as pesquisas pontuais e baseadas em métodos de modelagem como "reducionistas", mas a suposta complexidade do que eles escrevem se resume a isto: dogmas ideológicos justificados por meio de discursos filosóficos sobre a natureza humana e que ditam os rumos de qualquer pesquisa aprioristicamente.

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