sábado, 4 de agosto de 2012

Fani e França Filho provam que a geografia ainda vive em 1980

Já escrevi um texto para rebater as críticas de Ana Fani A. Carlos ao meu ensaio Certa má herança marxista (Diniz Filho, 2002), como se pode ler aqui. Mostro no trabalho que, além de cometer erros grosseiros de interpretação do que escrevi, a autora tergiversa sobre a crise do marxismo, faz ataques ao sistema capitalista em desacordo com a realidade empírica e ainda deixa de lado a inexistência de propostas consistentes e radicais de construção do socialismo. Pois eu li um artigo de Astrogildo L. França Filho (2009) que também erra na interpretação do que escrevi naquele ensaio, também ignora a necessidade de debater a crise do marxismo e, por tudo isso, parece ter sido publicado no começo dos anos 1980.


De fato, o objetivo do texto de França Filho é pôr em questão a tese de que o marxismo demorou a ser efetivamente incorporado à geografia devido à "suposta negligência por parte de Marx para com os fenômenos espaciais" e "identificar,  ao  longo  do  final  do  século  XIX  e  século  XX, possíveis linhas de contato  entre  pensamento geográfico e pensamento marxista a fim de elucidar essa questão e, também, entender como a interação do materialismo histórico com a Geografia somente se inicia recentemente".

Ou seja, o autor simplesmente retoma um debate dos anos 1980 como se tudo o que aconteceu desde a queda do Muro de Berlim não tivesse trazido nenhuma questão nova para refletir sobre as possibilidades, limites e dificuldades de aplicação do método e das teorias marxistas na geografia! E isso mesmo considerando que o meu texto, publicado já faz dez anos!, alinhavou um grande número de problemas teóricos e empíricos para aplicar o marxismo não só ao temário geográfico, mas também à compreensão da crise do socialismo e do desenvolvimento capitalista!

Fora isso, na curta passagem em que França Filho (2009, p. 12) comenta Certa má herança marxista, é para acusar um equívoco que não está presente no texto:
As  imprecisões  na  delimitação das diversas filiações marxistas até hoje causam bastante confusão, principalmente com o uso do rótulo Geografia Crítica, diretamente associado à geografia Marxista, como é o caso da definição feita por Diniz Filho, 2002, onde a identificação do marxismo como a linha filosófica dominante é colocada como critério de classificação. Dentro desse pressuposto, o autor identificou alguns pontos comuns desse diálogo teórico que, para ele, sintetizam as características principais da Geografia naquele momento e nos dias atuais: 
"a) no plano epistemológico, subsidiando os esforços de redefinição do objeto da disciplina, fornecendo um método de análise que se procurava aplicar a esse objeto e ainda um discurso  que atribuía ao método marxista uma cientificidade inquestionável; b) no plano teórico, por oferecer uma teoria crítica ampla do capitalismo e um sistema de conceitos e teorias mais específicas passíveis de serem aplicadas no estudo de temas geográficos; c) na esfera  ideológica, moldando (e ao mesmo tempo se amoldando) à 'visão de mundo' dos geógrafos, isto é, as representações e valores simbólicos que orientam seus posicionamentos políticos; d) no plano deontológico, estabelecendo a existência de um estreito vínculo entre ciência, ética e  política e enfatizando a necessidade da ação militante, a qual deveria tomar por base os pressupostos teóricos e metodológicos mencionados para assumir um caráter científico e socialmente transformador".
É correto afirmar que eu aponto a influência do marxismo como um dos elementos definidores da geografia crítica, na medida em que todos os autores identificados com essa corrente foram fortemente influenciados por teorias e ideologias marxistas. Todavia, é absolutamente falso dizer que eu estabeleci uma associação direta entre geografia crítica e geografia marxista, pois a revisão bibliográfica elaborada na primeira seção do meu ensaio mostra que entre os geocríticos havia tanto aqueles que procuraram construir uma geografia marxista de fato como outros que, embora profundamente influenciados pelo marxismo, nunca se propuseram a aplicar o método marxista à geografia. Tanto é assim que citei textualmente os casos de Yves Lacoste e de Milton Santos para corroborar essa avaliação de que, embora a geocrítica tenha no marxismo a sua pedra angular, não pode ser confundida com uma geografia marxista!

E essa interpretação errada do meu texto revela-se particularmente ridícula quando França Filho cita uma passagem na qual eu teria apresentado, segundo ele, "as características principais da Geografia naquele momento e nos dias atuais". Nada disso! O que eu resumi no parágrafo citado acima foram as "quatro esferas estreitamente complementares da produção geográfica" nas quais se revela a influência do marxismo, conforme está escrito literalmente na mesma página da qual o autor extraiu aquela citação.

Ler coisas assim me levam a pensar se autores como Ana Fani e França Filho divulgam interpretações erradas do que escrevo com o fim deliberado de confundir os leitores ou se o problema não está em alguma deficiência de leitura mesmo.

Ainda assim, devo dizer que me incomoda muito menos a deturpação das minhas análises do que a eterna insistência de certos geógrafos críticos em continuar fazendo ouvidos moucos para as crises do socialismo e do marxismo. Há uma década, eu mostrei que diversos intelectuais marxistas reconheciam e debatiam as contradições e dificuldades criadas pelo emprego do marxismo na explicação do mundo contemporâneo, e encerrei o texto Certa má herança marxista dizendo isto: "estamos diante de mais uma fase de mudanças na geografia, a qual traz consigo possibilidades interessantes de renovação, mas também muitas armadilhas a evitar e questões que precisam ser encaradas, ao invés de contornadas". Mas, conforme eu já esperava quando digitei essas palavras pela primeira vez, a geocrítica continuou preferindo contornar questões incômodas a tentar dar-lhes resposta, como provam os textos de Ana Fani e de França Filho, entre outros. 

E por que eu esperava que a geocrítica continuaria mais ou menos como se o mundo nunca tivesse saído do começo dos anos 1980? Pelo simples fato de que, muito ao contrário do que seria de esperar, essa geografia que se diz crítica raramente anda de mãos dadas com a autocrítica.

- - - - - - - - - -

DINIZ FILHO, L. L. Certa má herança marxista: elementos para repensar a geografia crítica. In: MENDONÇA, F. A.; KOSEL, S. (org.). Elementos de epistemologia da geografia contemporânea. 1. ed., Curitiba: Editora da UFPR, 2002.

FRANÇA FILHO, A. L. A presença (ou ausência) do pensamento marxista na geografia moderna. Revista Tamoios, Ano V, n. 1, jan./jun. 2009.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário foi enviado e está aguardando moderação.