quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Não pretendo fundar uma nova corrente de pensamento geográfico

Na última disciplina que ministrei junto ao Programa de Desenvolvimento Educacional - PDE, um dos professores que participaram fez uma pergunta muitíssimo interessante. Ele comentou que, como eu estava fazendo uma série de refutações a autores e teses pertencentes à geografia crítica ou radical (já que a proposta da disciplina era justamente questionar os conteúdos da geografia escolar informados por essa corrente), qual seria então a nova escola de pensamento geográfico que eu teria a propor em substituição a esta? Minha resposta foi que eu não tinha o objetivo de substituir uma vertente de pensamento por outra e que nem achava possível fazer isso na geografia.

De fato, para criar uma nova escola ou tendência de pensamento geográfico, seria preciso redefinir o objeto de estudo da geografia a partir de um corpo teórico-metodológico coerente, o que implicaria uma das seguintes opções: definir tal objeto de forma a restringir o temário geográfico aos fenômenos passíveis de serem tratados por meio desse conjunto de métodos e teorias selecionado; ou definir o objeto de pequisa a partir de uma epistemologia totalizante o suficiente para abranger todo o temário geográfico atual.

Se olharmos bem, foi isso o que aconteceu nas duas grandes "revoluções" da geografia. A corrente teorética ou quantitativista restringiu o objeto de estudo da geografia às "leis da organização espacial", estabelecendo-se, assim, uma tendência a estudar apenas os processos naturais e sociais importantes para a explicação dos padrões de formas da natureza, os padrões de distribuição espacial dos elementos naturais e sociais e, por fim, os processos que conectam pontos diferentes do espaço. Hoje, a aceitação de uma proposta epistemológica como essa ficaria sempre limitada pelo fato de que ela deixaria de fora inúmeros temas de estudo geográfico que não poderiam ser tratados adequadamente com base na metodologia científica e suas ferramentas matemáticas e estatísticas. É bem esse o caso, por exemplo, dos temas de geografia cultural e social que, nas últimas décadas, foram definidos e trabalhados com base em abordagens mais ou menos próximas do humanismo, tais como a fenomenologia e o estudo do espaço vivido.
 
Já a geografia crítica marxista fez o segundo caminho descrito, isto é, de definir o objeto de estudo da disciplina por meio de conceitos totalizantes, tais como os de espaço e de produção do espaço, de modo que praticamente todos os temas geográficos poderiam ser teorizados a partir de métodos e teorias marxistas. Isso foi possível porque o marxismo era, desde a origem, uma epistemologia baseada no conceito de totalidade dialética e, portanto, procurava articular processos econômicos, sociais, políticos e culturais em teorias abrangentes sobre a sociedade capitalista.
 
Ainda assim, vimos que o marxismo reforçou a tendência de afastamento entre os ramos físico e humano da geografia, dada a impossibilidade de tratar dos fenômenos da natureza com base no método marxista sem apelar para o conceito equivocado de "dialética da natureza". E, no âmbito da geografia humana, a produção de teorias gerais só foi possível na medida em que se apelou para diversas formas de determinismo econômico e de fetichismo espacial. Por fim, a vertente, digamos, pós-moderna da geocrítica repudiou alguns elementos do marxismo, como sua tradicional teoria da revolução, a ênfase nas relações econômicas e a perspectiva racionalista, mas manteve os mesmos raciocínios de causa e efeito e as mesmas teorias simplificadoras e maniqueístas das lutas políticas para continuar explicando o espaço numa perspectiva totalizante (Diniz Filho, 2013).

Onde eu quero chegar

Mas, se não existe uma epistemologia que possa servir de base para a substituição da hegemonia da geocrítica, ao menos sem mutilar de alguma forma o temário geográfico, qual seria então a saída? A saída é ter em mente que, numa pesquisa científica, as reflexões epistemológicas devem estar sempre e sempre atreladas ao objeto de pesquisa em foco. Foi exatamente isso o que eu procurei explicar no último parágrafo da obra didática Fundamentos epistemológicos da geografia, conforme segue:
Enfim, a filosofia não resolve os problemas epistemológicos da geografia ou de qualquer outra ciência. As respostas só podem ser encontradas pelos próprios pesquisadores e professores, em reflexões que transitam o tempo todo da problemática de pesquisa para a reflexão epistemológica e de volta para a problemática. Os caminhos que podem ser encontrados nesse trânsito são muitos. Cabe a nós descobri-los (Diniz Filho, 2009, p. 228).
Um bom exemplo disso é a minha tese de doutorado, que tratava da dinâmica econômica regional do Brasil no período 1970-2000. O método que eu elaborei para estudar esse tema, inspirado nos estudos de competitividade sistêmica, é bastante apropriado para esse tópico específico da geografia econômica, mas não necessariamente serve para outros temas de pesquisa nesse ramo da geografia e de maneira alguma pode ter utilidade na geografia social, política ou cultural. Os métodos adequados a aplicar nesses ramos da geografia precisam ser definidos pelos autores que se debruçam sobre os temas e objetos de estudo que lhes são próprios.

Portanto, o sentido de desconstruir a geografia crítica, trabalho a que tenho me dedicado nos últimos tempos, não é substituir essa tendência do pensamento geográfico por um novo pacote de respostas prontas. O objetivo é, pelo contrário, tirar do caminho os obstáculos epistemológicos representados pelas causalidades simplistas e pelos consensos ideológicos apriorísticos legados pela geocrítica para que respostas novas, mais objetivas e mais eficazes possam brotar no campo assim aberto.

Postagens relacionadas:
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DINIZ FILHO, L. L. Fundamentos epistemológicos da geografia. Curitiba: IBPEX, 2009 (Coleção Metodologia do Ensino de História e Geografia, 6).

DINIZ FILHO, L. L. Por uma crítica da geografia crítica. Ponta Grossa (PR): Editora da UEPG, 2013.

6 comentários:

  1. E será que poderia existir uma corrente capaz de convencer aos críticos de que eles estão errados em relação à perversidade do sistema capitalista concentrador, excludente e monopolista? Certamente, não poderá ser uma corrente só da geografia. rsrs
    Ah, já sei: basta recorrer às ideologias positivistas e voltar à nova geografia e utilizar algum artifício quantitativista bem complexo para confundir aos críticos que não tem muita habilidade com números e tentar desmoralizá-los. Talvez assim seja possível diminuir o número de críticos do capitalismo, pelo menos. Ha ha ha. Eu só não sei o quanto isso poderia ser eficaz, uma vez que os próprios números desmentem certos economistas defensores do livre mercado ao modelo inglês/estadunidense. Aí é que o bicho pega, né Doutor? Quando se aplica o método quantitativista para avaliar os avanços sociais nesse modelo pretendido natural e único possível. rsrs

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  2. Nenhuma corrente da geografia irá convencer os geocríticos em seu conjunto pelo simples fato de que a maior parte deles tem um modo de pensar totalmente dogmático, incapaz de qualquer autocrítica e de rever pontos de vista com base nos fatos.

    E você mesmo é assim, conforme se lê no segundo parágrafo do seu comentário: "basta recorrer às ideologias positivistas e voltar à nova geografia e utilizar algum artifício quantitativista bem complexo para confundir aos críticos que não tem muita habilidade com números e tentar desmoralizá-los".

    Nessa passagem, você demonstra explicitamente estar convicto de que qualquer cientista que empregue os métodos da geografia quantitativa é um tapeador que usa truques matemáticos para enganar os outros no intuito de convencê-los de que o capitalismo é bom. Essa era exatamente a visão de Milton Santos sobre a geografia quantitativa, conforme já citei em mais de um trabalho publicado. Para ele, os geógrafos dessa corrente ou eram ingênuos ou mercenários a serviço do "capitalismo selvagem" (sic!). É o mesmo que você acabou de dizer.

    A propósito, eu não trabalho com a geografia quantitativa, na medida em que não me dedico à modelagem de padrões espaciais. Em minha tese de doutorado, aliás, eu critiquei diretamente a insuficiência dessa perspectiva teórica para explicar a dinâmica regional brasileira. Mas nem por isso deixei de me utilizar de estatísticas econômicas para provar, de forma irrefutável, que os economistas regionais brasileiros erraram redondamente quando previram que as reformas dos anos 90 provocariam um esgotamento ou reversão do processo de desconcentração econômica iniciado no Brasil em 1970.

    O mesmo se dá em meu último livro, "Por uma Crítica da Geografia Crítica": eu não construí modelo matemático algum, mas usei dados estatísticos para demonstrar que o capitalismo está melhorando a vida das pessoas em todos os continentes e que os livros didáticos manipulam dados descaradamente para fazer o Brasil real se encaixar nas teorias e ideologias críticas do capitalismo.

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  3. Ah, publicou esse comentário também, Doutor?!
    Aliás, sempre que imagina que vai ficar bem na cena, decide publicar o comentário. rsrs
    Aqui dá pra ver bem o tamanho da sua arrogância, ao desqualificar Milton Santos. Imagino que ainda nem pensou no quanto teria que ralar para conseguir 1% do respeito e prestígio que esse professor tem pelo mundo afora, mesmo depois de morto.
    Pra começar, nunca irá conseguir que os leitores tenham paciência de ler suas acusações políticas cheias de citações estatísticas e passe a vida inteira conferindo planilhas pra ver se seus dados são realmente verídicos. Essa foi mesmo de doer! kkkkk

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    1. Você não respondeu à minha crítica, qual seja, a de que você, do mesmo modo que os outros geocríticos, supõe que os autores de outras correntes de pensamento são farsantes por definição.

      Em vez de responder, você se desviou do assunto e usou o argumento de autoridade. Mas, mesmo que o assunto em discussão fosse o pensamento de Milton Santos - eu o citei apenas como um exemplo para provar meu argumento - sua resposta continuaria inócua. A razão é simples: Milton Santos escrevia com todas as letras que os autores ligados à geografia quantitativa eram ou ingênuos ou mercenários a serviço do "capitalismo selvagem". Ver, por exemplo, o texto abaixo:

      SANTOS, M. Para que a geografia mude sem ficar a mesma coisa. Boletim Paulista de Geografia, São Paulo, n. 59, p. 5-22, 1982.


      Portanto, o modo de pensar dele era realmente maniqueísta, simplificador e dogmático, assim como o seu. O prestígio acadêmico que ele alcançou não muda esse fato inconteste.

      Por fim, não há necessidade alguma de passar "a vida inteira conferindo planilhas" para comprovar se as estatísticas que eu cito são verídicas. Por exemplo, se você entrar no site do IBGE e baixar os relatórios da Pesquisa de Orçamentos Familiares, em PDF, verá que basta algumas horas de leitura para verificar que eu estou dizendo a verdade.

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  4. Acaba caindo no senso comum ao afirmar que o que melhora a vida é o capitalismo e não a produção, o trabalho, os quais independem diretamente desse sistema político e sim de interesses da população e sua boa administração. Aliás, temos exemplos suficientes nos últimos tempos de que o capital tem produzido mais especulação do que bens e o trabalho tem perdido seu valor. Uma das maiores provas disso é a grande quantidade de trabalho escravo que só vem aumentando ano após ano e já ultrapassa os 20 milhões, de acordo com OIT. Impossível não enxergar aí um retrocesso.

    SABADINI, M. S. Trabalho e Especulação Financeira: uma relação (im)perfeita. Temporalis, Brasilia (DF), ano 11, n.22, p.241-269, jul./dez. 2011.
    Disponível em http://periodicos.ufes.br/temporalis/article/download/1422/1632

    SENADO FEDERAL. Trabalho escravo atualmente. Disponível em http://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/trabalho-escravo/trabalho-escravo-atualmente.aspx

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    1. Nem Karl Marx concordaria com essa bobagem de que a produção e o trabalho "independem diretamente" do capitalismo. Afinal, se fosse assim, ele não poderia nem sequer ter escrito uma obra como "O Capital", já que, se os sistemas produtivos e os processos de trabalho não fossem organizados pelo capital, esse autor nem sequer poderia falar em "exploração do trabalho"!

      E o que você entende por "boa administração" de "interesses da população"? É uma expressão que soa completamente sem sentido.

      Quanto às tentativas de usar dados sobre trabalho escravo para criticar o capitalismo, cabe dizer que, mesmo que tais informações sejam aceitas como corretas, essa crítica não tem o menor cabimento, pelos seguintes motivos:

      a) Se analisarmos as relações de trabalho vigentes em todos os países socialistas à luz das legislações trabalhistas ocidentais, ficará claro que, com exceção de burocratas dos partidos comunistas, todos os trabalhadores socialistas vivem (ou viviam, antes da queda do socialismo) em condições "análogas à escravidão";

      b) É falso que o capitalismo tem produzido mais especulação do que bens e desvalorização do trabalho. Como diz Paulo Guedes, as crises recentes foram causadas, primeiro, por financistas americanos e, depois, pela socialdemocracia europeia. E vale dizer que, mesmo no caso americano, a política de juros baixos extremamente generosa dos anos 1990 e 2000 responde pelo incentivo ao aumento da oferta de crédito em condições de risco crescente. Nesse sentido, não se trata de crise do capitalismo coisa nenhuma. Tanto é assim que o Brasil, graças ao saneamento financeiro feito por FHC (mediante o PROER e o PROES), bem como à continuidade da política econômica do segundo mandato desse presidente nos governos de Lula, foi menos atingido pela crise de 2008 do que os EUA e Europa. Não é um problema estrutural, portanto.

      c) Os problemas trabalhistas na "periferia" do sistema capitalista nada têm a ver com a lógica da acumulação de capital, mas com a fragilidade institucional do capitalismo nesses países, como mostram os institucionalistas.

      d) Eu já discuti a questão do sentido progressista do capitalismo no livro POR UMA CRÍTICA DA GEOGRAFIA CRÍTICA (ver Dica de Livro 2, acima).

      OBSERVAÇÃO - Não se esqueça de publicar minha resposta no seu blog e também nas redes sociais, hein?

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