Em 1982, o Boletim Paulista de Geografia publicou uma edição especial com o tema Geografia e Imperialismo. Estávamos ainda na fase da maior efervescência da geografia crítica e radical, quando a maioria dos integrantes dessa corrente se dizia marxista ou, no mínimo, afirmava utilizar o "método dialético" como base de suas pesquisas.
Nesse tempo, Carlos Walter Porto Gonçalves era a regra, não a exceção. No artigo que publicou nessa edição da revista (Gonçalves; Azevedo, 1982), seguiu a mais pura linha teórica marxista e leninista para explicar o dito imperialismo. Está tudo lá, como se pode ver num resumo esquemático:
- "Essa dissociação entre as palavras e as coisas vai perdurar enquanto continuar a relação contraditória das classes sociais entre si e com a natureza". É a concepção de ideologia como falsa consciência da realidade produzida deliberadamente pelas classes dominantes para garantir a reprodução da sociedade capitalista.
- As teorias de Ratzel sobre o espaço vital são uma ideologia imperialista, e La Blache nada mais fez do que uma "pseudo-crítica" ao determinismo, já que não conseguiu sair do reino da ideologia.
- "O imperialismo pode ser sinteticamente definido como o domínio dos grandes monopólios industriais e financeiros sobre o mundo". Lênin, citado no artigo, dizia exatamente isso.
- Toda a história do capitalismo se dá num esforço permanente da burguesia para contrabalançar os efeitos da lei da tendência à queda da taxa de lucro. Isso é puro Marx e Lênin.
- "O planejamento, de certa forma, retarda a manifestação mais cruel desta lei [...]".
- "Por isso, afirma-se, o imperialismo caracteriza uma época de guerras e revoluções".
Acho que não preciso continuar com o resumo. O que se verifica por esse artigo, mesmo quando o cotejamos com outros trabalhos publicados pelo autor nos anos 80, como o livro Os (des)caminhos do meio ambiente (Gonçalves, 1989), é que a sua teorização era profundamente marcada pelo marxismo em suas versões mais ortodoxas, a exemplo da teoria leninista do imperialismo. Todavia, durante a fala dele no I Colóquio nacional de pós-graduação em geografia, realizado em novembro de 2001, o que mais se ouviu foi a frase "eu não sou marxista". Ora, à luz de textos como aquele que eu acabei de resumir, seria mais correto ele dizer que deixou de ser marxista!
Mas até que ponto ele teria deixado de ser marxista? Quem assiste às palestras que Carlos Walter tem proferido dos anos 90 em diante vê um homem que critica o economicismo - a mesma concepção que embasou as afirmações listadas acima... - e que não pára de usar um jargão humanista para despejar visões subjetivistas e antirracionalistas sobre a plateia. Fala muito no "imaginário coletivo", nos "sonhos", nos "deuses da natureza", critica a "ciência cartesiana", e assim por diante. Todavia, não mudou suas velhas concepções críticas e radicais sobre o capitalismo: tudo o que acontece de ruim no mundo é culpa desse sistema, desde a dita "crise ambiental" até a criminalidade (ele já chegou ao ponto de culpar o agronegócio pelas taxas de homicídio nos estados do Centro-Oeste, sem qualquer detalhamento das informações ou argumento que justificasse tal associação!). E continua tão autoritário quanto os marxistas velhos de guerra. Se não fala em revolução socialista, nem por isso deixa de ser um entusiasmado apoiador da ditadura de Hugo Chávez.
Ele estava dentro da regra quando o marxismo era a grande moda da geografia, e continua seguindo a regra nos dias atuais. Incapazes de teorizar os temas geográficos sem apelar para o determinismo econômico marxista (que tornou-se pouco defensável diante da derrocada do socialismo), a saída encontrada pelos geocríticos foi incorporar elementos do pós-modernismo e do humanismo para dar um verniz de modernidade e de arejamento teórico e político às suas velhas ideias. Esses geógrafos acham que tudo o que escreveram contra o capitalismo estava certo: basta agora substituir a tese da centralidade operária pelos "movimentos sociais" de parolagem radical, num discurso romântico regado com muitas afirmações superficiais e categóricas contra a "ciência cartesiana" e em favor do "imaginário", dos "sonhos" e "utopias" desses grupos.
O humanismo dos geógrafos atuais é só uma maquiagem para o velho economicismo marxista. Carlos Walter, como o resto dos que ascenderam com a geocrítica, mudou para ficar a mesma coisa.
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GONÇALVES, C. W. P. Os (des)caminhos do meio ambiente. São Paulo: Contexto, 1989.
Professor, se for possível o senhor poderia explicar por que o determinismo econômico marxista é difícil de ser defendido hoje em dia? Visto que o argumento economicista e marxista é tão difundido atualmente, não entendo qual é a dificuldade de defender essas ideias. Mesmo que sejam falácias, a fé pública não facilita esse tipo de defesa?
ResponderExcluirOlá, Edmilson. A sua pergunta é muito pertinente. Eu vou ver se escrevo um post sobre isso até segunda-feira.
ResponderExcluirAbraços.
A fé pública também já defendeu a Inquisição e a escravidão... Mas, Diniz, desnecessário dizer que teu blog está cada vez melhor. Destaco estes dois parágrafos:
ResponderExcluirEle estava dentro da regra quando o marxismo era a grande moda da geografia, e continua seguindo a regra nos dias atuais. Incapazes de teorizar os temas geográficos sem apelar para o determinismo econômico marxista (que tornou-se pouco defensável diante da derrocada do socialismo), a saída encontrada pelos geocríticos foi incorporar elementos do pós-modernismo e do humanismo para dar um verniz de modernidade e de arejamento teórico e político às suas velhas ideias. Esses geógrafos acham que tudo o que escreveram contra o capitalismo estava certo: basta agora substituir a tese da centralidade operária pelos "movimentos sociais" de parolagem radical, num discurso romântico regado com muitas afirmações superficiais e categóricas contra a "ciência cartesiana" e em favor do "imaginário", dos "sonhos" e "utopias" desses grupos.
O humanismo dos geógrafos atuais é só uma maquiagem para o velho economicismo marxista. Carlos Walter, como o resto dos que ascenderam com a geocrítica, mudou para ficar a mesma coisa.
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E foi esta gente que se sentiu a vontade quando criticou FHC por ter dito "esqueçam tudo o que eu escrevi". Pelo menos, ele foi sincero.
Comentários pertinentes, professor Diniz. Falta leitura mas sobretudo leitura acrescida de senso crítico, o que o senhor tem de sobejo.
ResponderExcluirSeu blog está cada vez melhor!
Charlotte
Quais trechos o prof. exemplificaria em "Os (des)caminhos do meio ambiente" que sinalizam que o referido autor ainda mantém um pensamento marxista?
ResponderExcluirNa verdade, a passagem do texto acima em que eu cito esse livro indica que, nessa obra, a influência marxista não é marcante. Daí eu ter escrito "mesmo quando o cotejamos...".
ExcluirContudo, no livro NÃO CULPE O CAPITALISMO, eu retomo essa discussão sobre o modo como Carlos Walter mudou para ficar a mesma coisa comparando aquele artigo de 82 com outro que ele publicou em 2009. Nesse trabalho muito mais recente, fica explícito que Carlos Walter agora mistura as velhas teorias imperialistas de sempre com a mitificação dos povos indígenas, no melhor estilo Lênin com roupagem pós-modernista.
Mais informações sobre o livro (inclusive para compra) podem ser encontradas no link abaixo:
http://naoculpeocapitalismo.blogspot.com.br/