domingo, 10 de novembro de 2013

A esquerda gigolô do feminismo

A edição de outubro da revista Piauí traz uma matéria que homenageia o talento, a luta política, o humor anárquico e até a genialidade do cartunista e jornalista Henfil, morto há 25 anos (acesso aqui, mas só para assinantes). Sem perceber que estava fazendo um quarto de século que ele morreu - fração de tempo que enseja comemorações e rememorações, tanto quanto a "mística do número redondo", de que falava Carlos Drummond de Andrade -, escrevi alguns posts sobre Henfil neste blog. Meu objetivo, porém, era mostrar um outro lado desse autor, tomando-o como exemplo máximo de um viés de pensamento fascistoide muito típico da esquerda brasileira: a presunção de superioridade moral, manifesta na tendência a acreditar que qualquer pessoa que discorde das teses defendidas pelos esquerdistas só pode ser mau caráter.


Bem, essa edição da Piauí me remete a uma variante do tema, que é o modo como a ideologização, a partidarização e a presunção de superioridade moral da esquerda se combinam para prostituir bandeiras políticas em si mesmas elogiáveis, como a crítica aos preconceitos. E, para mostrar isso, não preciso nem me estender em comentários sobre o texto que o jornalista Sérgio Augusto publicou a respeito do Henfil na revista; basta comparar as charges e tiras do Henfil republicadas ao longo da edição com um texto que ele escreveu lá nos idos da década de 1980.

Realmente, o que me chamou a atenção nas charges e tiras da personagem Graúna reproduzidas na Piauí é que várias delas tratavam do machismo, inclusive com referências à Semana da Mulher, que era novidade na época do Henfil. Talvez o critério usado para selecionar esse material fosse mostrar como o pensamento de Henfil era pioneiro e atual. O problema é que isso me trouxe à memória um texto que ele publicou no jornal O Pasquim no qual comparava "duas Marias": a economista Maria da Conceição Tavares, que havia chorado durante uma entrevista de TV em que fazia a defesa do Plano Cruzado, e Maria Luiza Fontenele, que havia sido a primeira mulher eleita para ocupar a prefeitura de Fortaleza.

As críticas que ele fez à Conceição eu comento em outra hora. Só de passagem, menciono que, na época, ela era peemedebista e colaborava com o governo Sarney, razão pela qual, embora marxista, tomava umas lambadas do Henfil e de outros petistas. Já ao falar de Fontenele, que então se situava entre os quadros mais radicais do PT, Henfil se desmanchou em elogios. Chamou-a de "a linda" e procurou defendê-la das acusações de nepotismo que vinha sofrendo à época por haver nomeado seus dois ex-maridos para ocupar cargos públicos de confiança na prefeitura. 

Eu poderia respeitar os argumentos de Henfil se ele tivesse pesquisado a trajetória dos ex-maridos para mostrar que, embora nomeados politicamente, eles tinham competência técnica para exercer os cargos. Eu poderia dar algum crédito à argumentação se ele analisasse o contexto da política cearense da época para demonstrar que, independentemente dos vínculos pessoais, as duas nomeações eram importantes para garantir a base de apoio político à gestão da prefeita. Todavia, Henfil nunca foi um jornalista investigativo, e nem mesmo um jornalista especialmente bem informado e de muitas leituras, conforme se pode notar por seus livros, como Henfil na China e Diário de um cucaracha (li os dois na adolescência). Daí que o brilhante argumento que ele conseguiu arranjar era que Fontenele estava sendo crucificada só por causa do "machismo" dos cearenses! Segundo ele, o povo do Ceará era tão machista que uma mulher separada, ainda por cima duas vezes, era execrada sem perdão...

A alegação era ridícula porque, se houvesse um machismo tão forte assim no Ceará da época, ela jamais teria sido eleita! Mas talvez ele estivesse supondo que o eleitor cearense não via muito problema numa mulher ocupar a prefeitura da capital desde que ela fosse solteira, viúva ou bem casada... Mas então quer dizer que os eleitores só descobriram que ela era separada depois da eleição? Os candidatos que disputaram com ela não exploraram isso durante a campanha eleitoral, tendo em vista um eleitorado assim tão "machista"?

A verdade é que Henfil estava bancando o gigolô do feminismo, no sentido de que instrumentalizou partidariamente a crítica ao machismo para difamar os cearenses e desviar a atenção do público das críticas dirigidas contra a prefeita, que giravam em torno da questionabilidade ética do nepotismo e de seus efeitos negativos em termos da competência dos quadros técnicos do Estado. Aliás, os sucessos eleitorais do PT após esse episódio só confirmaram que o nepotismo é uma prática corriqueira entre os petistas, como se pôde constatar, por exemplo, nas gestões de Zeca do PT, no Mato Grosso do Sul, e de Lula, na presidência da República.

Se existe atualidade no pensamento de Henfil, está apenas no modo como ele reproduzia os piores vícios da esquerda brasileira, como a presunção de superioridade moral, o uso de retórica desonesta para desqualificar críticas e a instrumentalização partidária de bandeiras que, em si mesmas, são positivas, como a luta contra os preconceitos. Ele foi um gigolô do feminismo, do mesmo modo como Lula e os demais petistas sempre procuram desqualificar as críticas acusando seus autores de preconceito de gênero, racial, regional ou de classe. E isso mesmo depois que Lula se tornou o primeiro operário cujos filhos, por meio de casamento e/ou de negócios com empresas concessionárias de serviços públicos, se transformaram em milionários...

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2 comentários:

  1. Mas a direita também pensa assim: quem quer que discorde de suas "teses" é "esquerdista" *.

    * termo utilizado para descrever pessoas que flertavam com regimes ditadoriais já desmoronados, muito comum na Europa oriental no século XX

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    1. De fato, pessoas que pensam de forma maniqueísta e que ideologizam todos os debates estão presentes tanto na esquerda quanto na direita. No post acima eu tratei do modo como Henfil e outros esquerdistas partidarizam os discursos de crítica ao preconceito. Já no post "Uma Nota sobre Olavo de Carvalho" eu trato do mesmo problema no campo da direita. Contudo, eu falo muito mais da esquerda porque a hegemonia política, no Brasil, está com a esquerda e, o que é pior, uma esquerda fascistoide, que desqualifica todas as críticas e demoniza todas as vozes discordantes com pechas do tipo "direitista", "machista", e assim por diante.

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