Comentei num post anterior o texto Todo dia é dia de índio, do professor Giovani José da Silva, que traz ideias interessantes para o ensino da história e da cultura indígenas (aqui). Volto a esse trabalho para mostrar outras possibilidades interessantes que o tema traz para o ensino de história e também para alertar contra os usos ideológicos que se costuma fazer dele em livros de história e de geografia. Comecemos com esta passagem:
A partir da apresentação dos mitos [...] é possível mostrar aos alunos maneiras distintas de se compreender o mundo. O primeiro passo seria a escolha de um mito, como, por exemplo, o da criação dos kadiwéus, segundo o qual este povo que habita atualmente a Reserva Indígena Kadiwéu, no município de Porto Murtinho (MS), teria recebido do Criador coragem e valentia, motivo do espírito de bravura que os diferenciaria de outros grupos indígenas (Silva, 2012, p. 78).
Uma coisa que os professores podem destacar com base em mitos como esse é que, de acordo com o que aprendi na disciplina Introdução à Antropologia, durante a graduação, o etnocentrismo é uma característica universal, no sentido de que todos os povos, modernos ou tradicionais, julgam os outros povos com base nos seus próprios valores e tendem a atribuir a si mesmos características que seriam únicas e que os tornariam superiores aos demais. É um bom antídoto contra a ideia preconceituosa de que o etnocentrismo seria um viés exclusivo da cultura europeia e norte-americana, o chamado "Ocidente". Contudo, o autor do texto sugere uma via muito distinta de reflexão a partir desse conteúdo:
Em seguida, o professor apresenta o mito à turma, mostrando diferentes aspectos - por exemplo, como essa identidade guerreira foi importante na participação [dos kadiwéus] na Guerra do Paraguai. Os alunos devem refletir sobre as lutas do tempo presente e as possibilidades de apropriação do mito nos dias atuais (Idem, ibidem).
Não fica claro a que conclusões o autor imagina que os alunos poderiam chegar seguindo essa sugestão, já que ele não menciona as lutas contemporâneas das quais está falando, especificamente. Seriam as guerras no Iraque e no Afeganistão? Não vejo em que o conhecimento da identidade cultural belicosa dos kadiwéus poderia ser útil para refletir sobre questões como essas. Ou ele estaria se referindo às lutas políticas de organizações que se autointitulam "movimentos sociais", denominação referendada por intelectuais que simpatizam com as causas desses grupos? Se o caso for esse, já aviso que a tal "apropriação" do mito citado será extremamente perniciosa se servir como justificativa para as práticas violentas de muitos desses grupos.
Talvez pudéssemos aproximar esse conteúdo da realidade atual de modo mais pertinente refletindo sobre as recentes invasões de terras agrícolas feitas por índios no interior do Paraná, por exemplo. O problema é que isso poderia conduzir a uma conclusão nada lisonjeira para os índios. Por exemplo, à conclusão de que esses grupos tomam o que desejam pela força porque seguem uma cultura tradicional incompatível com o regime democrático, na medida em que os valores de "coragem" e "bravura" cultivados pelos povos indígenas no passado - isso não era exclusividade dos kadiwéus - só têm serventia durante uma guerra, não quando se trata de resolver conflitos democraticamente. Talvez seja mais correto considerar que as recentes invasões de terras empreendidas por índios têm motivações econômicas semelhantes às que animam as organizações de supostos "sem-terra", não mantendo relação com os valores tradicionais de culturas nativas.
Mas a passagem do texto que mais merece uma tomatada é esta:
Os objetos levam a uma discussão sobre o uso de artefatos em nossa própria sociedade, cada vez mais voltada para o consumismo e o desperdício de recursos naturais (Idem, ibidem).
Aí fica claro aonde o autor pretende chegar. Afinal, seu comentário já está dando como certo que a sociedade moderna se pauta "cada vez mais" pelo "consumismo" e pelo "desperdício de recursos naturais". Nesse sentido, ele acha que devemos usar o ensino de cultura indígena, em seus elementos materiais, como pretexto para pôr em debate as críticas ideológicas da esquerda e dos grupos ambientalistas à sociedade moderna e já tomando essas críticas como descrições de fatos evidentes. O problema é que interpretar uma cultura à luz de ideologias que pretendem justificar a si mesmas não é coerente com o objetivo de mostrar aos alunos formas diversas de "compreender o mundo", já que, dessa forma, as culturas dos povos indígenas deixam de ser descritas com o fim de revelar as visões do outro sobre a realidade para ser interpretadas segundo os interesses ligados a uma disputa ideológica do presente.
Além dessa incoerência de objetivos, tal procedimento tende a gerar distorções, na medida em que os fatos históricos ensinados aos alunos acabam sendo selecionados de acordo com um filtro ideológico. No caso em tela, o questionamento ao "consumismo" proposto no artigo só funciona de maneira simples se forem omitidas dos alunos informações sobre o modo como os índios, perseguindo ativamente seus próprios interesses, assimilaram as tecnologias trazidas pelos europeus.
Os nativos da América desconheciam a metalurgia do ferro e, assim, as trocas comerciais que faziam com os europeus tinham os utensílios feitos desse material, especialmente machados e facões, como um de seus objetos de desejo mais importantes. Mostrar bordunas, potes de barro, cocares e miçangas para as crianças e, depois, propor que elas reflitam sobre o dito "consumismo" sem avisar que os índios adoravam machados de ferro porque lhes facilitava o trabalho de cortar árvores implica transmitir uma visão falseada da história. A cultura material dos índios não envolvia o uso intensivo de recursos naturais não renováveis simplesmente porque eles não dispunham de tecnologia para produzir instrumentos mais eficazes usando outros materiais além de madeira, argila e pedra, e não porque eles já fossem "felizes" sem precisar de coisas que facilitam o trabalho de extração de recursos da natureza.
Se for para fazer as crianças acreditarem nesse mito moderno de povos que conseguem ser saudáveis, bem alimentados e "felizes" usando só tecnologias rudimentares, então é melhor trocar uma aula sobre história e cultura indígenas por uma sessão de vídeo com o filme Avatar.
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SILVA, G. J. Todo dia é dia de índio. Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 7, n. 82, p. 76-79, jul. 2012.
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