Diogo Mainardi escreveu certa vez que o intelectual existe para complicar, mas os intelectuais brasileiros simplificam. Ele tinha toda razão. Ao invés de participarem dos debates públicos visando contribuir com conhecimentos detalhados e tão objetivos quanto possível sobre os assuntos em pauta, de modo a corrigir as simplificações produzidas pelo senso comum e pela retórica dos militantes, nossos intelectuais se querem também militantes. Não se incomodam, pois, de construir visões da realidade baseadas em retórica simplificadora, contraditória ou até mentirosa mesmo, conforme já procurei demonstrar neste blog ao criticar autores como Lopes de Souza, Conceição Tavares, Milton Santos, Belluzzo, e vários outros.
Neste post, relembro a afirmação de Mainardi para fazer referência a uma palestra em que Rogério Haesbaert (2009), com uma honestidade que eu nunca tinha visto ninguém externar, afirmou que não existe problema nenhum quando um intelectual faz certas simplificações no estudo das identidades, e que ele até deve agir assim mesmo. Ora, como não tem problema? A troco de que passar anos a fio pesquisando determinado assunto se o objetivo for, em nome de uma causa política ou social qualquer, pintar um quadro da realidade propositalmente distorcido pela simplificação que for mais adequada para favorecer essa causa? Um jornalista pode fazer a mesma coisa em muito menos tempo e sem gastar dinheiro público, além de atingir um número de leitores bem mais amplo. Os militantes, então, nem se fala!
A verdade é que o discurso de Haesbaert, se for levado ao extremo de sua lógica, traz implicações até de ordem ética. Por exemplo, a exigência legal de laudo antropológico para a demarcação de terras indígenas traz como exigência a obrigação de o antropólogo trabalhar com evidências factuais concretas para afirmar se e quando os grupos indígenas que pleiteiam determinada área chegaram ali pela primeira vez. Se os profissionais responsáveis pelo laudo resolverem "simplificar" sua interpretação da realidade por terem simpatia para com as reivindicações dos índios ou antipatia ideológica por grandes proprietários de terras, estarão cometendo um desvio ético, pois seu conhecimento só tem utilidade se for objetivo e neutro.
O mesmo se dá no que diz respeito aos remanescentes de quilombos. Conforme já demonstrei no post Quilombolas de hoje são os novos zumbis, houve tempo em que os intelectuais falavam das populações de índios e quilombolas como vítimas de um extermínio puro e simples. Mas, com a legislação que permite conceder terras a grupos populacionais que reivindiquem uma identidade quilombola, assiste-se hoje a uma multiplicação acelerada de "territórios quilombolas"! Isso mostra que o objetivo de favorecer causas sociais e políticas leva os intelectuais a serem não apenas simplificadores, mas também incoerentes. Primeiro, simplificaram a história da colonização para criar um sentimento de culpa coletivo por conta de um suposto extermínio de índios e quilombolas. Com a mudança na legislação, porém, começaram a simplificar a realidade no sentido inverso: basta haver um predomínio de pretos e pardos numa área rural ou urbana qualquer para os acadêmicos chancelarem as reivindicações dessa população por terras, e ponto final. É exatamente isso o que tem feito o Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica – Ciga, da Universidade de Brasília, que já mapeou milhares de "territórios quilombolas". Ao invés de se empregar conhecimentos detalhados de antropologia ou de geografia cultural para identificar populações cuja cultura seja de fato herdada de quilombos, os pesquisadores sancionam o critério da autodeclaração sem nem se incomodarem com o fato de que a legislação vigente dá incentivos econômicos para quem mentir sobre sua história e identidade!
Não, senhor Haesbaert! O tempo e o dinheiro público que os acadêmicos dispendem em suas pesquisas só são justificáveis ética e socialmente quando auxiliam o Estado a tomar decisões que, embora inevitavelmente relacionadas a valores e ideologias, precisam basear-se em conhecimentos empíricos independentes desses mesmos valores e ideologias para não cometer injustiças e para alcançar mais eficiência na aplicação de recursos. Nesse sentido, não pode haver dúvida de que, bem ao contrário do que ele diz, o intelectual existe para complicar!
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HAESBAERT, R. O Mito da Desterritorialização. Conferência proferida durante o I Simpósio Nacional de Geografia Política, Território e Poder. Curitiba: UniCuritiba, 02 jun. 2009.
Já dizia Max Weber que ainda que o cientista não seja neutro, ele tem que fazer um esforço objetivo para que seu trabalho não se torne enviesado ideologicamente. Concordo com essa frase, pois ela ajuda a fazer ciência de verdade, e não panfletagem ideológica.
ResponderExcluirFui aluno de Rogério e o máximo que ouvi sobre simplificações foi em relação a como expressar os resultados das pesquisas. Talvez você esteja distorcendo o que falou.
ResponderExcluirSe ele não faz esse tipo de afirmação nas aulas, isso é ótimo para a geografia. Mas, no evento citado, ele disse aquilo mesmo, conforme anotei.
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