No post anterior, comentei que a mistura de política com pesquisa acadêmica atingiu um nível tal que Aloizio Mercadante virou doutor ao transformar em tese um livro de propaganda política que ele havia escrito para defender o governo do seu partido. Para dar brilho à defesa dessa tese, cuja surpreendente conclusão é a de que o governo Lula constitui uma novidade histórica altamente positiva, foram convidados para a banca alguns grandes nomes da ciência econômica brasileira, dentre os quais estava João Manuel Cardoso de Mello, imperador do IE-Unicamp.
Certamente, João Manuel viu na tese uma confirmação de suas próprias ideias sobre como o neoliberalismo é mau e como a intervenção econômica estatal pode ser muito boa. De fato, já no início dos anos 1990 esse senhor publicou o texto Consequências do neoliberalismo, no qual fazia previsões para lá de sombrias sobre o que iria acontecer por conta das reformas ditas "neoliberais" que então se iniciavam. Vejamos só um parágrafo:
E por melhor juízo que façamos do dinamismo exportador é preciso convir que não seria suficiente sequer para promover uma rápida e sustentada elevação dos padrões de vida dos integrados pobres ou remediados, quanto mais para restaurar o velho mecanismo da mobilidade social ascendente. [...] Nesse quadro social tão fraturado e cheio de conflitos é até possível que o Estado neoliberal se mantenha dentro do regime democrático. Mas não é provável. O provável é que, para prevalecer, tenha que se transformar no que se convencionou chamar de fascismo de mercado (Mello, 1992, p. 64).
Essas passagens mereciam entrar para o Guinness como recorde de previsões furadas feitas com menor número de palavras! Vamos ver:
- Ao contrário de "fascismo de mercado", o que se viu foi que as eleições de 1989, 1994 e 1998 foram as primeiras totalmente democráticas realizadas na história do Brasil (Bethell, 2000).
- O mecanismo da mobilidade social ascendente continuou funcionando muito bem, obrigado, como mostram os indicadores de estado nutricional e de posse de bens de consumo durável, entre muitos outros (Diniz Filho, 2011; IBGE, 2007).
- O Plano Real, que enfrentou a oposição de gente como João Manuel, tirou milhões de pessoas da pobreza, como provam cabalmente os dados da PNAD (Barros, 2006).
- Não só a pobreza diminuiu como, ao contrário do ocorrido nos anos 1960 e 1970, a desigualdade de renda começou a declinar rapidamente a partir de 1995, num processo que dura até hoje. De 2001 a 2005, esse processo ganhou velocidade e abrangência, pois começou a refletir-se também no indicador de renda domiciliar per capita (Hoffman, 2006).
Apesar de tudo ter saído exatamente ao contrário do que o autor previu, a claque político/acadêmica nunca deixou de prestigiá-lo. Prova disso é que, na banca de tese de Mercadante, João Manuel saiu-se com esta: "Fernando Henrique, que achava que era o Juscelino, mas verificou-se que era o Dutra". A frase foi recebida com uma "gargalhada geral" da plateia, formada por cerca de 150 pessoas (Carvalho, 2012).
Mais uma vez, fica demonstrado, como eu já disse várias vezes neste blog, que os intelectuais críticos do capitalismo são protegidos de si mesmos. O apocalipse segundo João Manuel nunca aconteceu (muito pelo contrário!), mas a claque está aí para tratá-lo como profeta e gargalhar ruidosamente de qualquer bobagem que ele diz. Quem tem claque não precisa acertar; basta ser bom companheiro.
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BARROS, R. P.; FOGUEL, M. N.; ULYSSEA, G. (org.). Desigualdade de renda no Brasil: uma análise da queda recente. Brasília: Ipea, v. 1, 2006.
BETHELL, L. Brasil: o legado dos 500 anos e o futuro. In: VELLOSO, J. P. R. Brasil: 500 anos: futuro, presente, passado. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
CARVALHO, L. M. Louvor e distinção. Época Online, 02 mar. 2012.
CARVALHO, L. M. Louvor e distinção. Época Online, 02 mar. 2012.
DINIZ FILHO, L. L. Agricultura e mercado no Brasil: revendo as visões da geografia sobre os condicionantes da produção agrícola no capitalismo. RA'E GA: o espaço geográfico em análise, n. 23, 2011.
HOFFMAN, R. Queda da desigualdade da distribuição de renda no Brasil, de 1995 a 2005, e delimitação dos relativamente ricos em 2005. In: BARROS, R. P.; FOGUEL, M. N.; ULYSSEA, G. (org.). Desigualdade de renda no Brasil: uma análise da queda recente. Brasília: Ipea, v. 1, 2006.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Sistema de informações e indicadores culturais 2003-2005. Rio de Janeiro: IBGE, 2007.
MELLO, J. M.. Conseqüências do neoliberalismo. Economia e Sociedade, n. 1, 1992.
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