quinta-feira, 27 de março de 2014

Sobre racismo e determinismo ambiental no pensamento de esquerda

No post O determinismo ambiental está vivo, e a esquerda apoia, eu mostro como a revista História Viva fez uso das teorias do historiador Ian Morris para sustentar a tese de que a ascensão do chamado "Ocidente" nada tem a ver com as instituições econômicas e políticas liberais, nem com qualquer fator cultural ou político, pois seria apenas fruto dos caprichos da geografia. Demonstrei ainda que o determinismo ambiental esteve presente em muitas elaborações teóricas marxistas, como em O Capital e nas teorias de Caio Prado Júnior sobre a distinção entre colônias de povoamento e colônias de exploração. Recentemente, mandaram um comentário a esse texto que diz o seguinte:
Não estou de acordo: Determinismo geográfico é o que praticam organismos financeiros internacionais hoje para promover políticas neoliberais, como demonstro na minha dissertação de Mestrado (sob orientação do Prof. Vesentini) através do Banco Interamericano de Desenvolvimento, apoiado pelo próprio Jared Diamond (Ian Morris fazendo parte deste meio discursivo). No que se refere ao século XIX, é preciso não trocar alhos por bugalhos: o determinismo geográfico podia coincidir, à diferença de hoje, com ideias progressistas, abolicionistas e republicanistas, como nos diz a história literária e cultural do Brasil.
A primeira observação a fazer é que, embora eu tenha demonstrado com citações literais que as teorias de Morris foram usadas para mover uma crítica contra as teses liberais de Francis Fukuyama - e, por extensão, contra todos os autores que afirmam o papel central das instituições econômicas e políticas dos países capitalistas democráticos na explicação de seus elevados níveis de bem-estar social - o comentador tentou negar minha afirmação dizendo que autores como Morris subsidiam políticas "neoliberais" praticadas por organismos financeiros internacionais. Trata-se, pois, de uma crítica completamente inócua. Afinal, mesmo que se concorde que organismos como esses embasam certas ações em ideias deterministas, isso não muda o fato, provado com as citações, de que a revista História Viva se apoiou igualmente no determinismo de Morris para sustentar uma visão crítica das instituições econômicas e políticas liberais.

A segunda observação a fazer é que há outros exemplos de uso de discursos deterministas por parte da esquerda que eu não cheguei a citar naquele post, e que dizem respeito não à esquerda intelectual, mas à esquerda política. A transposição do São Francisco foi anunciada com estardalhaço marqueteiro, fazendo eco ao discurso - que os geocríticos sempre acusaram de determinista - que identifica a seca como causa maior dos problemas sociais do Nordeste. Logo no início do primeiro governo Lula, a revista IstoÉ - que tem baixa credibilidade, pois depende de propaganda paga por estatais do governo federal para sobreviver, já que tem poucos assinantes e anunciantes - publicou uma matéria intitulada "A Revolução das Cisternas", que tratava de um programa de apoio para a construção de cisternas em pequenas propriedades rurais da região da seca no Nordeste.

Quanto a dizer que o determinismo podia coincidir com ideias progressistas, abolicionistas, etc., estou de acordo. Tratei do assunto em minha dissertação de mestrado, ao mostrar que o determinismo ambiental, embora estivesse sempre combinado ao determinismo biológico, podia servir para amenizar as teses racistas (Diniz Filho, 2002).

É o que se via, por exemplo, em um conservador como Oliveira Vianna. Mas não é o que se via em Sérgio Buarque de Hollanda em seu famoso Raízes do Brasil. Embora tenha sido um dos fundadores do PT (partido socialista e de esquerda), Hollanda criticava explicitamente a tese de Vianna de que o meio natural seria um fator explicativo do progresso dos povos mais importante do que a raça. Para Hollanda, essa tese seria apenas uma desculpa para minimizar o nosso suposto problema racial...

Finalmente, qualificar uma ideia como progressista ou reacionária depende das referências teóricas e ideológicas de quem a avalia. Conforme eu demonstrei no meu doutorado, no livro Por uma crítica da geografia crítica (Diniz Filho, 2013) e em vários textos deste blog, as políticas que os intelectuais "críticos" qualificam como neoliberais trouxeram resultados completamente opostos aos que eles previram. Um autor como Vesentini, por exemplo, à luz do que eu escrevi nas obras citadas, jamais poderia ser qualificado como progressista ou qualquer coisa que o valha. As ideias dele, assim como as dos demais expoentes da geocrítica, geraram todo tipo de abominação política, pedagógica e científica no âmbito da pesquisa e do ensino de geografia!

Postagens relacionadas:
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DINIZ FILHO, L. L. . O determinismo ambiental na formação do pensamento político autoritário brasileiro. Curitiba:  RA'E GA, v. VI, n.6, p. 7-46, 2002.

DINIZ FILHO, L. L. Por uma crítica da geografia crítica. Ponta Grossa (PR): Editora da UEPG, 2013.

4 comentários:

  1. Diniz, dê uma olhadinha no item 2: http://hypescience.com/5-coisas-surpreendentes-que-manipulam-seu-humor-diariamente/?utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed%3A+feedburner%2Fxgpv+%28HypeScience%29

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    1. Minha desconfiança pela psicanálise é gigantesca, conforme já comentei num breve post deste blog, mas eu gosto muito desses experimentos conduzidos por psicólogos - e psicologia é diferente de psicanálise. Por isso, eu gosto daquela série "Truques da Mente", do NatGeo, e de livros como "O Andar do Bêbado", "Freakonomics" e "Superfreakonomics". Os testes conduzidos por psicólogos e economistas acerca dos incentivos que influem nos comportamentos competitivos e cooperativos são particularmente esclarecedores.

      Experimentos como esses relatados no site permitem mostrar que a natureza tem mesmo um efeito no comportamento humano, ainda que essa influência não seja decisiva a ponto de explicar a história humana, como pensaram Ellen Semple e Hutington.

      O nexo entre uma coisa e outra é esclarecida pela biologia evolutiva. A matéria no site comenta que gostamos de ouvir o canto dos pássaros. A explicação é que, numa floresta, o silêncio dos pássaros indica que pode haver predadores por perto, de modo que a seleção natural programou nossos cérebros para gerar sensações de relaxamento quando os pássaros estão cantando e dar sinais de alerta quando não há cantoria.

      E as informações sobre a cor vermelha também são muito interessantes. Entre babuínos, o vermelho serve tanto para expressar agressividade como para sinalizar que uma fêmea está no cio - machos agressivos arreganham as gengivas quando mostram os caninos enormes, enquanto o traseiro das fêmeas fica mais irrigado com sangue quando elas estão férteis. Logo, um homem se sente mais intimidado se tiver de enfrentar um rival vestido de vermelho e se sente mais atraído por mulheres que usam roupa vermelha.

      E a luz solar, segundo um cefaliatra com quem já conversei a respeito, influi na depressão e nas crises de cefaleia! Curitiba não é um bom lugar para quem tem esses problemas, embora não seja impossível para essas pessoas morarem aqui.

      Enfim, há um mundo de coisas interessantes para além dos dogmas estreitos do marxismo.

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  2. Estamos falando da naturalização de desigualdades sociais; quem tem interesse nisto? A esquerda sempre busca as causas sociais, antrópicas dos mal-estares, ela não bate nas terras, pedras ou ares, mas nos capitalistas, não é? A agulha que você achou no palheiro de Marx precisa ser contextualizada nos determinismos em voga da época. Os deterministas geográficos do século XXI que estigmatizam os "trópicos" são defensores do livre mercado como Jeffrey Sachs ou Ricardo Hausmann: o livro 'Geografia é destino?' do BID o diz claramente: os problemas sociais não se deveriam à história política ou econômica dos países, senão a condições ambientais que devem ser remediadas pelo livre mercado sob ordens ocidentais.
    A revista que você citou diz que o mundo atual não é resultado de instituições criadas pelo homem, mas pela própria natureza que faz alguns sofrerem e outros gozarem de riqueza a longo prazo. Ian Morris invoca historicamente a lei do mais forte contra o mais fraco; aproximar isto à esquerda brasileira é insultá-la. Você desemboca naquela perpétua polêmica entre "liberalismo" e "esquerda", incluso essas brigas internas, corporativistas sobre o que é, ou não é, "geografia critica", que não pode ser resolvida pelos geógrafos - cabe aos historiadores da ciência e das idéias, daqui em 50 anos.
    Mas sim: o determinismo geográfico hoje serve para negar as causas sistêmicas, profundamente humanas, dos mal-estares sociais, inculpando supostas naturezas.

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    1. O fato de a esquerda bater nos capitalistas não implica que ela descarte necessariamente o determinismo ambiental como abordagem científica válida para explicar fenômenos sociais. Marx usava o determinismo para explicar a razão de o capitalismo haver surgido na Europa. Caio Prado Júnior usava tanto o determinismo ambiental quanto o biológico (racismo) para explicar a história.

      E, quando é conveniente do ponto de vista de seus projetos de poder, setores da esquerda podem muito bem criticar ares, pedras ou o que for. Exemplos disso são os que eu citei sobre o modo como os governos do PT usaram políticas contra a seca como peças de propaganda. E a edição da revista História Viva que eu citei textualmente no outro post usa as teses de Morris para contestar Fukuyama com a tese de que a superioridade do Ocidente é fruto dos caprichos da natureza, o que significa naturalizar as desigualdades sociais.

      Quanto a dizer que o determinismo de Marx precisa ser contextualizado, isso é óbvio. Mas o fato de Marx usar o determinismo ambiental de forma diferente de outros autores do período não muda o fato de que, para ele, o determinismo ambiental era cientificamente válido se inserido nos marcos do seu método.

      É sabido que um elemento central do materialismo histórico dialético é a perspectiva da totalidade. Logo, quando Marx usou as condições edáficas do continente europeu para explicar a origem do capitalismo, estava sendo coerente com essa perspectiva metodológica. Não se trata de uma ideia solta ou de uma afirmação impensada, mas de uma proposição teórica justificável pelo método marxista e que fazia parte da mais importante obra econômica desse autor.

      Portanto, não há nenhum "insulto" à esquerda brasileira nos meus textos, já que a instrumentalização de teses deterministas por parte de setores da esquerda é muito bem demonstrada pelas citações literais que fiz e nos exemplos políticos que citei. Tanto que a tese segundo a qual o clima determinou a formação de colônias de exploração e de povoamento, explicando assim as diferenças atuais de desenvolvimento, continua até hoje a ser ensinada nas aulas de história do ensino médio sem que os geógrafos deem um pio a respeito!

      E é falso que eu oponho liberalismo e esquerda. No post "A Culpa da Nossa Direita", entre outros, eu deixo bem claro que a direita brasileira é e sempre foi antiliberal, razão pela qual tem o PT como aliado político preferencial.

      E não existe nenhum "corporativismo" na discussão sobre o que é a geografia crítica, mas tão-somente um debate científico sobre a validade ou não dos métodos e teorias produzidas por essa corrente que é hegemônica na geografia.

      Quanto a dizer que precisamos esperar 50 anos para os historiadores da ciência tratarem da geocrítica, nunca vi desculpa mais esfarrapada para interditar questionamentos a essa corrente, tendo em vista que:

      a) não tem cabimento supor que historiadores da ciência são mais competentes para avaliar criticamente uma escola de pensamento geográfico do que os próprios geógrafos!

      b) A geocrítica surgiu já faz, por baixo, 40 anos; será possível que isso já não é distanciamento histórico suficiente para avaliá-la? Ainda precisamos esperar mais meio século? Ou você acha que só se pode debater uma corrente teórica depois que ela tiver desaparecido?

      Quanto a dizer que o determinismo tem servido para negar as causas sociais dos problemas da sociedade, isso é verdade. Mas aí também há duas observações a fazer:

      a) A própria esquerda faz isso quando lhe interessa, conforme já demonstrado;

      b) Autores que defendem as virtudes do capitalismo também negam explicitamente que a natureza determine as diferenças de desenvolvimento entre os povos e situam a explicação desse fenômeno em "causas sistêmicas, profundamente humanas", como você diz. Ver a respeito o livro "Por Que as Nações Fracassam?", de Daron Acemoglu e James Robinson, e também "O Mistério do Capital", de Hernando De Soto.

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