quinta-feira, 12 de julho de 2012

Literatura e ciência nas férias. Ou: Calvino e o conhecimento sintético

Transcrevi num outro post (aqui) uma passagem do livro As cidades invisíveis, de Italo Calvino, na qual se lê uma bela metáfora sobre os limites da formalização matemática na teorização do espaço urbano e, de forma mais ampla, nas ciências sociais. Agora, resolvi tirar um tempinho das minhas férias para mostrar como essa história se desdobra no livro. 


Ocorre que, ao ver a decepção do imperador Kublai Khan diante da impossibilidade de usar o jogo de xadrez para entender as cidades de seu império pela construção de um sistema lógico coerente - e sem falar que o próprio objetivo final dessa operação terminou por escapar ao soberano -, o viajante Marco Polo resolveu mostrar outras formas de obter conhecimento a partir dos elementos do jogo. Segue-se então uma narrativa que, até certo ponto, ilustra o ambicioso objetivo que deu origem à geografia. Vejamos como Calvino escreveu essa passagem

Então Marco Polo disse:

- O seu tabuleiro, senhor, é uma marchetaria de duas madeiras: ébano e bordo. A casa sobre a qual se fixou o seu olhar iluminado foi extraída de uma camada do tronco que cresceu num ano de estiagem. Observe como são dispostas as fibras. Aqui se percebe um nó apenas esboçado: um broto tentou despontar num dia de primavera precoce, mas a geada noturna obrigou-o a desistir. - Até então, o grande Khan não se dera conta de que o estrangeiro sabia se exprimir fluentemente em sua língua, mas não foi isso o que o surpreendeu. - Eis um poro mais largo: talvez tenha sido o ninho de uma larva; não de um caruncho, pois este, logo depois de nascer, teria continuado a escavar, mas de uma lagarta, que roeu as folhas e foi a causa pela qual a árvore foi escolhida para ser abatida... Esta margem foi entalhada com a goiva pelo ebanista, a fim de aderi-la ao quadrado vizinho, mais saliente...

A quantidade de coisas que se podia tirar de um pedacinho de madeira lisa e vazia abismava Kublai; Polo já começava a falar de bosques de ébano, de balsas de troncos que desciam os rios, dos desembarcadouros, das mulheres nas janelas...

Não era esse um dos caminhos para a construção de um conhecimento sintético, oposto à racionalidade analítica da ciência newtoniana? Sim, era esse mesmo: partir da descrição minuciosa de uma fração do espaço concreto para estabelecer uma série potencialmente infinita de relações entre elementos naturais e sociais. 

Contudo, há uma diferença importante entre o personagem Marco Polo e os propositores de uma ciência sintética, tais como Humboldt, Ritter e os geógrafos tradicionais: é que o personagem do romance não prometeu ao imperador elaborar uma teoria científica capaz de demonstrar e/ou explicar a unidade da natureza ou da superfície terrestre, ou mesmo a unidade do império; ele apenas usou um conhecimento empírico vasto para mostrar as múltiplas relações que podem ser estabelecidas a partir da descrição de uma tessela de madeira. 

O conhecimento enciclopédico e a capacidade de observação desse Marco Polo são admiráveis. Mas ele não chegou realmente a propor a construção de teorias gerais derivadas da síntese de conhecimentos sobre  fenômenos heterogêneos interligados. Se ele tivesse se proposto a fazer isso, seria um geógrafo. Mas não iria mais longe do que foi em sua demonstração ao imperador. 

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