terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Agronegócio e Shopping Centers na visão anacrônica da esquerda

Dois momentos interligados dentro dos processos de hegemonização das visões da esquerda intelectual e política no Brasil são: a) a construção de teorias que qualificam uma mudança conjuntural ou uma fase dentro de um processo mais longo como se fosse um elemento permanente dentro da "lógica do capitalismo", especialmente em sua forma "periférica"; b) a repetição dessas explicações apressadas década após década, sedimentando-as no senso comum mesmo quando as transformações da economia e da sociedade já provaram seu completo desacerto. Dois segmentos de atividade particularmente vitimados por esse congelamento de visões anacrônicas são o agronegócio e os shopping centers.


Agronegócio, a vítima de sempre

Desde os anos 1980, acadêmicos e professores repetem que a maior parte das terras agricultáveis brasileiras são improdutivas, que o agronegócio só se interessa em produzir commodities para exportação e matérias-primas industriais e que a produção de "alimento para o povo" fica abaixo do necessário porque não há modernização e aumento da produtividade nas culturas de mercado interno. 

Todavia, já na segunda metade dos anos 1980, quando houve a atualização dos cadastros de propriedades rurais a serem utilizados pela Política Nacional de Reforma Agrária (os quais estavam até então defasados em cerca de trinta anos), é sabido ser completamente falsa a visão de que o Brasil possui imensos latifúndios improdutivos (Graziano, 2004).

E os indicadores de produção e de produtividade agrícola mostram que, se é verdade que nos anos 1970, quando se deu a ascensão dos complexos agroindustriais, culturas como arroz, feijão e mandioca tiveram desempenho muito fraco, sobretudo na comparação com as culturas de soja, cana e laranja, as décadas seguintes mostraram uma indiscutível inversão de posições, com as culturas alimentares apresentando expansão da produtividade bem mais rápida do que as últimas três mencionadas. Além disso, a crescente industrialização dos alimentos fez com que, já ao longo dos anos 1980, a distinção entre culturas de mercado interno e externo fosse completamente superada. Tanto que a maior parte da soja produzida no Brasil não é exportada, mas consumida no mercado interno mesmo (Diniz Filho, 2013).

Nesse sentido, a dicotomia entre culturas de mercado interno e externo fazia um pouco de sentido nos anos 1970, mas não havia nada de intrínseco à dinâmica da acumulação capitalista nisso: a forte expansão dos complexos agroindustriais foi fruto de uma decisão do Estado naquela época, o qual, de maneira intervencionista, subsidiou fortemente a produção de commodities exportáveis. Tratou-se, portanto, de um processo episódico e fruto de decisões políticas, mas interpretado erroneamente como parte da "lógica do capitalismo", interpretação essa que é repetida ainda hoje nas escolas e em artigos científicos!

Shopping centers, a vítima do momento

Os textos que formam a coletânea multidisciplinar do livro Shopping Centers: espaço, cultura e modernidade nas cidades brasileiras (Frúgoli Júnior; Pintaudi, 1992), apresentam uma característica muito interessante: os artigos que tratam da implantação de shoppings em capitais fora de São Paulo acusam o caráter "elitista" desses estabelecimentos, implantados sempre nos bairros de renda mais alta da cidade em questão; já quando se aborda a capital paulista, essa caracterização muda de tom. É que, naquele início dos anos 1990, São Paulo possuía mais shoppings do que qualquer outra cidade brasileira, de modo que o perfil desses estabelecimentos já havia adquirido ali um caráter razoavelmente diversificado quanto à clientela atendida - diversificação que só se alargou nas décadas seguintes.

Ora, é claro que, quando uma metrópole recebe seu primeiro shopping center, ele irá focalizar a população de renda mais alta, pois o varejo voltado para esse tipo de público tende a ser mais rentável, o que valoriza e rentabiliza também os aluguéis cobrados pelos espaços de venda no shopping - lembremos que um shopping é um empreendimento imobiliário, pois as empresas varejistas, na grande maioria das vezes, apenas alugam o espaço para a loja. Todavia, os trabalhos de muitos geógrafos, sociólogos e antropólogos acerca dos shoppings falavam o tempo todo como se esse tipo de estabelecimento existisse para ser um "templo de consumo" e um espaço de "auto-segregação" exclusivo de classes médias e altas consumistas e elitistas. 

Nada poderia ser mais falso. Shoppings populares, assim como o varejo popular, podem ser menos rentáveis que os estabelecimentos voltados para a população de alta renda, mas há quantias muito maiores de dinheiro a ganhar vendendo bens e serviços para as massas do que ficar restrito apenas à elite. E pobre também gosta de espaços bonitos, com ar condicionado e seguros, ora essa! Quem só enxerga e elogia a sociabilidade que se entabula nas ruas são intelectuais que leem marxistas como Marshall Bergman e Henry Lefbvre, não os moradores da periferia, que se socializam nos shoppings tanto quanto nas ruas dos bairros.

Novamente, trata-se aí de uma visão que tinha certa correspondência com os fatos nas primeiras fases da instalação dos shopping centers no Brasil, mas que, embora tenha se revelado completamente falsa com o passar do tempo, continua a ser martelada por intelectuais cheios de convicções apriorísticas contra o capitalismo e militantes de partidos de esquerda. As bobagens que esses dois grupos vêm dizendo e escrevendo sobre os "rolezinhos" são a maior prova disso: confundem o comportamento irresponsável de adolescentes consumistas da periferia de São Paulo com manifestação "inconsciente" contra a sociedade de consumo...

Conclusão

Uma mentira é sempre mais verossímil quando está parcialmente baseada em fatos reais. Nesse sentido, é preciso denunciar essa tendência nefasta da esquerda a congelar no tempo diagnósticos e explicações que pouco ou nada têm de científicas, mesmo quando baseadas em alguns fatos que, de resto, só eram verdadeiros há quarenta anos atrás!

Postagens relacionadas

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DINIZ FILHO, L. L. Por uma crítica da geografia crítica. Ponta Grossa: Editora da UEPG, 2013.

GRAZIANO, X. O carma da terra no Brasil. São Paulo: A Girafa Editora, 2004.

FRÚGOLI JR., H. PINTAUDI, S. M. (org.). Shopping Centers: espaço, cultura e modernidade nas cidades brasileiras. 1. ed. São Paulo: Ed. da UNESP, 1992.

7 comentários:

  1. "Agronegócio a vítima de sempre". Vamos para de especulação e vamos aos dados do IBGE:

    No Censo Agropecuário de 2006 foram identificados 4.367.902 estabelecimentos de agricultura familiar. Eles representavam 84,4% do total, mas ocupavam apenas 24,3% (ou 80,25 milhões de hectares) da área dos estabelecimentos agropecuários brasileiros. Já os estabelecimentos não familiares representavam 15,6% do total e ocupavam 75,7% da sua área.

    Dos 80,25 milhões de hectares da agricultura familiar, 45% eram destinados a pastagens, 28% a florestas e 22% a lavouras. Ainda assim, a agricultura familiar mostrou seu peso na cesta básica do brasileiro, pois era responsável por 87% da produção nacional de mandioca, 70% da produção de feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz, 21% do trigo e, na pecuária, 58% do leite, 59% do plantel de suínos, 50% das aves e 30% dos bovinos. A seguir, as principais informações sobre a agricultura familiar no Censo Agropecuário 2006.

    Fonte: http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&busca=1&idnoticia=1466

    Chupa reaças! Chupa ruralistas! Chupa!!

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    1. Conheço bem esses dados, e tanto que os utilizei em meu último livro e também num post publicado neste blog. Ver: http://tomatadas.blogspot.com/2012/02/e-mentira-que-agricultura-familiar.html

      Nesse post, aliás, eu afirmo que a agricultura familiar cumpre um papel importante no fornecimento de comida, o que implica dizer que eu não tenho absolutamente nada contra a agricultura familiar. Eu me oponho apenas às mentiras que se inventam sobre a agricultura familiar e sobre o agronegócio para justificar uma reforma agrária que beneficia pessoas que nem são agricultores sem terra, mas desempregados urbanos.

      Ademais, os dados que você cita provam que, exatamente como eu escrevi acima, o agronegócio é vítima da mentira segundo a qual esse segmento produziria apenas produtos de exportação, enquanto os “camponeses” seriam responsáveis por produzir “comida para o povo”. Você mesmo acabou de mostrar que o segmento não familiar responde pela maior parte da produção nacional de arroz, trigo, milho e de carne de vaca, além de ser responsável por metade do plantel de aves e de 41,% do plantel de suínos. De modo análogo, você comprovou que a agricultura familiar participa com mais de um terço da produção nacional de café, cultura que professores de geografia dizem ser “de exportação”.

      OBSERVAÇÃO: essa mesma pesquisa que você cita demonstra que havia 909 mil menores de 14 anos de idade trabalhando na agricultura familiar em 2006. Trabalho infantil! Bacana, né? Tratei disso no seguinte post: http://tomatadas.blogspot.com/2012/05/trabalho-infantil-na-agricultura.html

      Você não consegue interpretar texto e nem entende estatísticas simples como essas, já que confirma o meu ponto de vista no momento mesmo em que pensa estar fazendo uma refutação. Se fosse alfabetizado, teria percebido que escrever o que eu escrevi nada tem a ver com ser "reaça" ou "ruralista": trata-se apenas de descrever fatos.

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    2. Quando uma tentativa de argumentação "cai no popular" só corrobora a visão geral que as pessoas têm de gente pouco informada, alfabetizada e minimamente educada: a estupidez explícita. Infelizmente, é difícil hoje em dia ter um debate sadio com pessoas de espectros ideológicos diferenciados sem ouvir gritarias...e fatos são fatos, a esquerda adora uma gritaria.

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  2. Hahahaha.
    Simplifica as coisas em comportamentos de posição e quer repreender os outros os acusando de fazer isso?!
    Tudo bem que há uma padronização descuidada em alguns trabalhos os quais uniformizam algumas características tanto para um tipo de agricultura quanto para o outro, mas desqualificar todos os que questionam a predominância de um modelo especulador que queira ou não, prejudica de alguma forma o abastecimento nacional, nem que seja na questão da qualidade ou de variedades é radicalismo político a favor do liberalismo e não há como disfarçar isso, Professor!
    As monoculturas estimuladas pelo grande agronegócio e a centralização da produção gera custos e um exemplo disso é o caso da beterraba que poderia ser produzida de norte a sul, mas concentra em algumas regiões em determinados períodos do ano e chega a percorrer até 3 mil quilômetros para ser consumida. Não precisamos nem calcular o quanto esse tipo de concentração faz aumentar os custos para o consumidor e consequentemente sacrificar ao produtor o especulando no preço pago na lavoura, não é mesmo?

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    1. É falso dizer que a agricultura patronal de grandes propriedades e baseada na tecnologia da revolução verde prejudique o abastecimento nacional. Em termos de variedade, a Pesquisa de Orçamentos Familiares prova que mesmo a população mais pobre do país tem alimentação variada e saudável (ver o texto Agricultura e Mercado no Brasil, na barra lateral deste blog).

      Já o raciocínio que você faz quanto ao custo de transporte decorrente da concentração da produção em poucas áreas não faz o menor sentido. A razão disso está no fato de que o custo de transportar beterraba a 3 mil Km é muito mais do que compensado pelos ganhos obtidos quando essa cultura se concentra nas áreas onde pode alcançar maior rendimento por área. A produção em larga escala reduz o preço final do produto, e essa redução é muito superior ao custo de transportar o produto a grandes distâncias.

      Além disso, produzir beterraba pelo país todo implicaria perdas derivadas dos altos custos de oportunidade. O custo de oportunidade de uma mercadoria é igual ao custo daquilo de que se abre mão para comprar ou produzir essa mercadoria. Se, para reduzir custos de transporte, plantassem beterraba em áreas onde seria mais produtivo cultivar outras coisas, o resultado seria um tiro no pé, pois o valor das culturas que deixaríamos de plantar com alta produtividade seria muito superior ao valor da beterraba plantada com produtividade mais baixa!

      Ademais, nenhum produtor rural do Brasil é proibido de plantar beterraba. Quem achar que pode produzir beterraba a preços competitivos para abastecer o mercado local, contando que os custos de transporte serão baixos, tem toda a liberdade de fazer isso. Logo, se produtores espalhados pelo Brasil todo deixam que a produção de beterraba se realize em poucas áreas, é por avaliarem que não vão conseguir plantar beterraba com produtividade tão alta e, consequentemente, preço tão baixo. A produtividade é mais decisiva na composição do preço final do produto do que o custo de transporte.

      É isso que explica, por exemplo, o fato de a cultura de laranja ser talvez a mais concentrada do mundo, em termos geográficos. O interior de São Paulo, principal área produtora de laranja do planeta, exporta a maior parte de sua produção. Por que países estrangeiros compram laranja produzida do outro lado do Atlântico, em vez de tentarem ser autossuficientes nessa cultura? Porque o preço final é mais afetado pela produtividade do que pelo custo de transporte.

      EM TEMPO - Não deixe de publicar minha resposta lá no se blog e nas redes sociais.

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  3. Como você não publicou a minha resposta e tão pouco me deu o prazer de ler o que pensa sobre ela, te envio uma frase de um economista que, sei, você admira muito:

    "40 mil produtores agrícolas, que controlam 50% das áreas agriculturaveis elegem de 120 a 140 deputados, enquanto de 4 a 6 milhões de famílias que praticam a economia familiar são representados por de 12 a 13 deputados" (Marcio Pochmann)

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    1. Márcio Pochmann é um péssimo economista e foi o pior presidente que o IPEA já teve. E esse comentário que você cita prova apenas que o sujeito vive de fazer distorções retóricas.

      Ao falar dos milhões de agricultores familiares, ele esconde o fato de que grande parte desses agricultores (especialmente no Nordeste) é pouco produtiva e vive na pobreza. Já os agricultores familiares bem-sucedidos concentram-se principalmente no Sul e Sudeste e conseguem ter boa produtividade por estarem inseridos no agronegócio. É o que revelam pesquisas realizadas por autores como Carlos Enrique Guanzirolli com base nos Censos Agropecuários.

      Sendo assim, uma bancada de deputados que atendesse aos interesses dos agricultores familiares pobres não faria outra coisa senão exigir aumento dos valores do Bolsa Família recebidos por estes, o que não ajudaria em nada os produtores familiares eficientes. Na verdade, estes últimos sairiam prejudicados, já que, assim como as classes médias e altas da cidade, pagam o assistencialismo das bolsas com seus impostos. O universo da agricultura familiar é formado por produtores que vivem e produzem sob condições extremamente heterogêneas e que, por isso, têm interesses diferenciados e demandam políticas igualmente diferenciadas.

      No final das contas, os agricultores familiares bem-sucedidos, ou “consolidados”, que é o termo usado por esses pesquisadores, podem ter seus interesses econômicos melhor representados por parlamentares eleitos com votos urbanos e talvez até pelos mesmos políticos que Pochmann diz que representam os grandes proprietários.

      E ele ainda se esquece de um fato evidente: a concentração de agricultores familiares pobres no Nordeste faz destes um colégio eleitoral muito importante para os políticos da região. Quem disse, então, que a bancada do Nordeste não tem nenhuma capacidade de representá-los?

      Falar do conjunto de milhões de agricultores familiares brasileiros como se fosse um todo homogêneo é talvez a mistificação ideológica mais repetida do Brasil. Pochmann só podia mesmo estar entre os que repetem essa retórica falseadora.

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