quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Gasto social crescente derruba as teses da esquerda intelectual e política

Em trabalhos de Maria da Conceição Tavares, de Milton Santos, de Marcelo Lopes de Souza e de outros intelectuais de esquerda, repete-se o mantra de que a pobreza e a desigualdade brasileiras têm origem em desequilíbrios ou contradições estruturais do capitalismo periférico ou semi-periférico, bem como na resistência das "elites" insensíveis a mudar esse modelo econômico de um modo tal que permitisse aplicar mais recursos em política social. Uma prova de que esse diagnóstico estaria correto - embora nem todos eles se preocupem em provar o que dizem... - seria a péssima qualidade dos nossos serviços públicos em contraste com os gastos do Estado com o pagamento dos juros das dívidas externa e interna, já que estes restringiriam o potencial de investimento e de gasto social do Estado brasileiro. 


O problema é que esse diagnóstico não passa de uma mentira deslavada! Desde meados dos anos 1980 (especialmente após a promulgação da Carta Constitucional de 1988), o que mais vem restringindo a capacidade de investimento do executivo federal é o aumento de gastos com transferências de renda de cunho social. Isso já foi demonstrado empiricamente, há alguns anos, pelo economista Fabio Giambiagi. Com base em informações do Banco Central, o autor mostra que o gasto médio anual com o pagamento de juros reais, como proporção do PIB,  variou da seguinte forma (Giambiagi, 2007, p. 35):
  • 5,0% do PIB no período 1985-1990
  • 3,7% nos anos 1991-1995
  • 4,7% em 1996-2000
  • 5,0% em 2001-2006 
De outro lado, as despesas do governo federal aumentaram expressivamente no período que vai de 1991 a 2006, conforme segue:
  • Transferências a Estados e Municípios: aumento de 2,6% do PIB para 4,5%
  • Gastos com pessoal: elevação de 3,8% para 5,1%
  • INSS: 3,4% para 7,9% (e tem gente que teima em dizer que não existe déficit da previdência...)
  • Outras despesas: de 3,9% para 6,2% do PIB
Considerando o total das despesas, portanto, houve um crescimento de 13,7% para 23,7% do PIB nos anos considerados, ao passo que a despesa com o pagamento de juros oscilou numa faixa que vai de 3,7% a 5,0% do PIB, voltando, assim, ao nível em que estava na segunda metade dos anos 1980 (Idem, p. 42). Nesse sentido, embora a despesa com juros seja indiscutivelmente alta, a crescente restrição à capacidade de investimento do Estado não se deve a esse item de despesa de forma alguma!

E por que os gastos do Estado cresceram tanto? Fabio Giambiagi responde claramente:
[...] do aumento do gasto público de 10% do PIB ao qual antes nos referimos entre 1991 e 2006, praticamente a totalidade dele se explica pelo aumento das despesas ditas "sociais", somadas ao aumento natural das transferências a estados e municípios. Só o aumento da despesa com inativos - INSS e servidores - somada com Loas/RMV e mais o Bolsa-Família gerou um "delta" de gasto público de 7% do PIB entre 1991 e 2006 (Idem, p. 49-50)[*]. 
Dali em diante, a tendência descrita pelo autor se aprofundou, visto que as despesas com o Bolsa Família, que eram de 0,4% do PIB em 2006, atingiram cerca de 1,0% do PIB no ano passado, e tendem a se ampliar ainda mais daqui em diante (ver aqui).

Consequências

Muito bem, alguém poderia argumentar que essa ampliação das transferências de renda é o preço a pagar para reduzir a pobreza e a concentração de renda no Brasil. Contudo, dizer isso traz implicações teóricas e empíricas que problematizam muito as teses da esquerda intelectual e política. 

Em primeiro lugar, esse argumento destrói as teorias que relacionam pobreza, concentração de renda e má qualidade dos serviços públicos a contradições econômicas que seriam estruturais ao sistema capitalista internacional e cujas consequências mais perversas se fariam sentir na "periferia" e na "semi-periferia". Os dados acima deixam claro que gastar mais ou menos com políticas de distribuição de renda e/ou serviços públicos de educação e saúde é uma decisão política, para o bem ou para o mal. 

Em segundo lugar, valorizar o papel de políticas assistenciais como o Bolsa Família na redução da pobreza e da desigualdade implica deslegitimar ou, no mínimo, reduzir a importância de tudo o que os economistas de esquerda já escreveram sobre a necessidade de reformar o capitalismo "periférico" por meio de políticas industriais ativas, investimentos maciços em educação, saneamento e habitação e/ou em reforma agrária. Afinal de contas, o Bolsa Família não muda a estrutura produtiva e nem a distribuição dos ativos na economia; esse programa consiste apenas em transferências de renda que transformam a poupança dos setores sociais de renda média e alta (a qual é a base do investimento produtivo) em consumo dos setores de menor renda.

Não bastasse tudo isso, é preciso notar que o aumento das transferências de renda e seu financiamento por meio da ampliação da carga tributária têm tido um efeito de concentração de renda! Conforme já destacaram Antonio E. T. Lanzana e Luiz M. Lopes (2009), o financiamento do déficit da previdência com recursos do Tesouro implica transferir cada vez mais renda para um segmento (os aposentados do setor público) que já ganha mais do que a média brasileira, enquanto a ampliação da carga tributária, numa estrutura de impostos com peso muito grande dos tributos sobre o consumo, penaliza mais os setores de baixa renda do que os setores de renda média e alta!

Encerrando

O volume e a natureza dos gastos do Estado com políticas sociais se determinam na esfera política, não por uma lógica econômica intrínseca ao "capitalismo periférico e dependente". No caso brasileiro, a ampliação dos gastos sociais num ritmo mais elevado do que a expansão do PIB tem sido financiada com redução dos investimentos e aumento da carga tributária. Essa dinâmica, e não as supostas restrições do "neoliberalismo" ao investimento estatal e às políticas sociais, é que responde pelo baixo crescimento da nossa economia nos últimos anos, em comparação com a média mundial, da América Latina e dos Brics (Lanzana; Lopes, 2009; Giambiagi, 2007). Não bastasse isso, a estrutura tributária e o sistema previdenciário legados pela Constituição de 1988 fazem com que o Estado siga a lógica de dar aos pobres com uma mão e tirar com a outra!

[*] Loas - Lei Orgânica da Assistência Social; RMV - Rendas Mensais Vitalícias

- - - - - - - - - - 

GIAMBIAGI, F. Brasil, raízes do atraso: paternalismo X produtividade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.

LANZANA, A. E. T.; LOPES, L. M. Economia brasileira: da estabilização ao crescimento. São Paulo: Atlas, 2009.

Postagens relacionadas:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário foi enviado e está aguardando moderação.