quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Quando o PT confirmou que foi bom vender a Vale do Rio Doce

Há décadas que professores de ensino médio e fundamental transformam a agenda política do PT e os discursos político-eleitorais desse partido em conteúdo didático ministrado nas salas de aula - e o mesmo acontece com autores de livros didáticos, tais como José W. Vesentini. Não bastasse isso, esses professores usam uma visão de ideologia inspirada no marxismo para desqualificar a imprensa independente, de tal sorte que publicações como Veja, O Estado de São Paulo e qualquer outro jornal, revista ou site que publique notícias inconvenientes para o partido - como as referentes ao "mensalão", por exemplo - são automaticamente acusadas de "direitistas" e de mentirosas pelos professores (Diniz Filho, 2013).

Se já é antiético e antirrepublicano transformar propaganda partidária em conteúdo escolar, muito pior ainda é constatar que a propaganda petista se constitui de mentiras que não só afrontam os fatos como ainda contradizem a prática política do próprio PT. Um bom exemplo disso são as políticas de privatização de empresas estatais e de concessão de serviços públicos à iniciativa privada. Sabendo das mentiras que os professores contam para os alunos sobre esse tema no ensino médio, eu apresento uma visão alternativa nas minhas aulas de Geografia do Brasil. A transferência do controle acionário da Companhia Vale do Rio Doce - CVRD, ocorrida em 1997, é um dos casos que eu cito.


Ora, já naquela época o economista e político tucano Antônio Kandir deu-se ao trabalho de desfazer o que ele chamou de "mitologia fabricada" sobre esse assunto. Vejamos algumas passagens do que ele escreveu:
A CVRD tornou-se uma empresa competitiva não por ser, mas a despeito de ser estatal. Para manter a posição alcançada e realizar todo seu potencial de crescimento, necessita porém de novos aportes de capital, maior poder de alavancagem financeira e maior liberdade para gerir os seu negócios.
[...] como estatal, a Vale estava submetida a uma legislação complexa e restritiva, que reduzia a eficiência e gerava custos adicionais para a companhia. Bastam alguns exemplos para demonstrá-lo. Primeiro, a obrigação de licitar a compra de produtos, conforme os dispositivos da Lei n. 8.666, forçava a empresa, em plena era do just in time, a carregar estoques superdimensionados, o que imobilizava recursos financeiros, engessava processos produtivos, onerava o custo de matérias-primas e o produto final (estudo realizado pela área técnica da própria Vale mostra que, em empresas estatais privatizadas, a redução dos preços das compras e dos custos administrativos atingiram respectivamente 20% a 30%). Segundo, o impedimento legal à livre aplicação de suas disponibilidades (as aplicações financeiras das estatais têm de seguir o disposto na Constituição e no Decreto-lei n. 1.290, além de resoluções do Conselho Monetário Nacional) limitava as possibilidades de sua gestão financeira, quer para maximizar rentabilidade, quer para minimizar riscos associados às suas atividades. Terceiro, a rigidez das regras, de natureza constitucional, referentes à admissão e à progressão e transferência funcionais, dificultava a gestão eficiente de pessoal (exemplo quase anedótico ocorreu nas Florestas Rio Doce, subsidiária da Vale, às voltas com o problema de ter de realizar concurso público para contratar especialistas em gestão de florestas, tais como "mateiros", "catadores de cobras" etc.). 
[...] Sim, [a Vale] é uma empresa rentável, que será ainda mais rentável em mãos do setor privado. Como empresa estatal, sua rentabilidade estava muito longe de ser excepcional. Em 1996, o retorno sobre o capital próprio da empresa foi de 4,6%, pouco acima da média do período 1991-1996 (4,4%). Comparada essa rentabilidade com os juros reais incidentes sobre a dívida pública, hoje ao redor de 13%, fica evidente o custo de manter-se imobilizados recursos públicos no capital da Vale. O custo fica ainda mais evidente quando se consideram os dividendos transferidos pela Vale ao Tesouro Nacional: estes, no mesmo período, mal ultrapassaram 1% sobre capital investido pela União na companhia (Kandir, 1998, p. 223-224).
Intelectuais e políticos de esquerda, assim como ativistas de organizações que se dizem "movimentos sociais", nunca se conformaram com a transferência do controle acionário da empresa. Os sindicalistas também não, embora a causa de seu inconformismo fossem interesses corporativistas contrariados. Assim, em 2006, os ditos "movimentos sociais" elaboraram um conjunto de propostas para o segundo mandato presidencial de Lula, organizadas no documento "Projeto Brasil", sendo que uma das propostas consensuais era a de cancelar o leilão de venda de ações da CVRD (Giambiagi, 2007, p. 20).

Lula nada fez nesse sentido e, assim, coube ao deputado Ivan Valente - que trocou o Partido dos Trabalhadores pelo PSOL em virtude de o PT haver abandonado suas bandeiras históricas - tentar essa empreitada. Em 2007, ele foi autor do projeto legislativo n. 374, que dispunha sobre a realização de um plebiscito acerca da retomada do controle acionário da Vale pelo Poder Executivo (ver aqui). O projeto foi encaminhado à Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio da Câmara, e o relator do projeto na Comissão foi o deputado José Guimarães (PT-CE), irmão de José Genoíno.

Ora, o voto desse deputado, na qualidade de representante do PT na Comissão, foi contrário ao projeto. E, o que é mais importante: o petista justificou seu voto em contrário com informações quantitativas que confirmam plenamente tudo o que Antonio Kandir havia escrito sobre o tema cerca de dez anos antes!

A íntegra do texto segue abaixo. Por ora, reproduzo apenas algumas passagens particularmente esclarecedoras do voto de José Guimarães:
Se forem consideradas as ações da Previ (cuja diretoria é indicada pela União) e do BNDES como de influência direta do governo federal, este gerencia, por posse ou indicação, cerca de 41% do capital votante (incluindo participações externas à Valepar). Incluindo-se, ainda, a participação do Bradesco e dos investidores brasileiros, cerca de 65% do capital votante da empresa se encontram no País. 
Nesse sentido, não só a influência da União nos destinos da empresa é ainda muito grande, como sua participação nos lucros da empresa é muito significativa, especialmente se for avaliado que, após a privatização, e em consequência do substancial aumento dos preços do minério de ferro, a Vale fez seu lucro anual subir de cerca de 500 milhões de dólares em 1996 para aproximadamente 12 bilhões de dólares em 2006. 
[...] De fato, em 2005, a empresa pagou 2 bilhões de reais de impostos no Brasil, cerca de 800 milhões de dólares ao câmbio da época, valor superior em dólares ao próprio lucro da empresa antes da privatização.
O PT jogou no lixo suas bandeiras históricas, mas mantém um discurso político-eleitoral que persiste em repetir as mesmas mentiras deslavadas que o partido usava contra o governo FHC. E os professores, cegos pela convicção de que esse partido é senhor de todas as virtudes e de todas as verdades, reproduzem as mentiras em sala de aula sem se darem conta de que a prática do partido desmente o discurso!

Aluno cabeça feita

Durante a aula, eu cito as conclusões que constam da justificativa de voto do petista José Guimarães para mostrar que o discurso dos professores do ensino médio é falso, mas não informo que esse documento é uma das fontes que eu consultei. Resultado: um(a) aluno(a) mandou um comentário anônimo sobre o post Ônibus interestadual caro explica a diferença entre PT e PSDB no qual me acusa de fazer doutrinação e de reproduzir informações publicadas na revista Veja, as quais seriam ideologicamente enviesadas. Em minha resposta, esclareci que as informações publicadas pela Veja são simplesmente fatos, e citei algumas passagens da justificativa de voto de José Guimarães para mostrar que o(a) aluno(a) pensa que tais informações são mentiras inventadas pela revista porque ignora o posicionamento do PT no caso do projeto legislativo n. 374 de 2007.

Eu sou professor universitário e, assim, recebo alunos já formados pelo nosso sistema de ensino doutrinador. Daí que certos alunos já entram na faculdade iguais aos nossos doutores em geografia: pensam como Ivan Valente, mas votam no PT. O problema chega ao ponto de alguns deles acreditarem que estão diante de mentiras inventadas por tucanos e pela "mídia golpista" mesmo quando se trata de informações reconhecidas oficialmente pelo próprio PT. Lamentável.


COMISSÃO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, INDÚSTRIA E COMÉRCIO
PROJETO DE DECRETO LEGISLATIVO N. 374, DE 2007

Dispõe sobre a realização de plebiscito acerca da retomada do controle acionário da Companhia Vale do Rio Doce pelo Poder Executivo.
Autor: Deputado IVAN VALENTE
Relator: Deputado JOSÉ GUIMARÃES

I - RELATÓRIO

Trata-se de projeto de decreto legislativo que determina que o Tribunal Superior Eleitoral faça realizar, em todo o Território Nacional, um censo plebiscitário com a finalidade de recolher manifestação, favorável ou contrária, dos cidadãos, acerca da retomada do controle acionário da Companhia Vale do Rio Doce pelo Poder Executivo da União. Justifica o ilustre Autor que o processo de privatização da Companhia Vale do Rio Doce caracterizou apropriação do patrimônio do povo brasileiro por particulares e deve ser revertido em nome do controle público sobre os recursos naturais essenciais para o crescimento do país e para a manutenção de sua soberania. A matéria ainda será apreciada pelas comissões de Finanças e Tributação e de Constituição e Justiça e de Cidadania É o relatório.

II - VOTO DO RELATOR

Cabe à Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio proferir parecer sobre o mérito econômico da matéria em tela. Nesse sentido, do ponto de vista econômico, o primeiro foco de análise deveria se concentrar sobre a questão de se seria ou não um bom negócio para a economia brasileira reverter a privatização da Vale. Cabe ressaltar que tais considerações envolvem argumentações técnicas de relativa profundidade, que dificilmente poderiam ser abordadas de maneira completa em um debate público, no calor de um processo eleitoral plebiscitário, eivado de argumentos simbólicos e simplistas que, muitas vezes, podem distorcer aspectos econômicos de maior complexidade.

Isto posto, de forma preliminar, é preciso considerar que a Companhia Vale do Rio Doce é um dos orgulhos nacionais desde a sua fundação e em muito contribuiu para o desenvolvimento do País. Com efeito, trata-se da segunda maior mineradora do mundo e da maior empresa privada do Brasil. É a maior produtora de minério de ferro e de pelotas do mundo e a segunda maior de níquel. A Vale destaca-se ainda na produção de manganês, cobre, bauxita, caulinita, carvão, cobalto, platina, alumina e alumínio. A dimensão dos seus negócios a credencia como uma das grandes empresas mundiais, cujos negócios provocam desdobramentos não só na economia brasileira, mas na economia global.

De fato, desde sua criação, no Governo Vargas, a Vale se organizou como uma empresa de economia mista, caracterizada pela participação de sócios privados e do setor público em forma de sociedade aberta, com o controle acionário majoritário nas mãos da União. Hoje, a Vale é uma empresa privada de capital aberto, com sede na cidade do Rio de Janeiro, com ações negociadas na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) e na Bolsa de Valores de Nova York (NYSE), inclusive integrando o Índice Dow Jones, indicando que seu desempenho econômico influencia diretamente um dos mais importantes indicadores da economia mundial.

Ao final de 2006, a Vale anunciou a incorporação da INCO canadense, a maior mineradora de níquel do mundo, operação de aquisição que foi efetivada no decorrer de 2007, sob forte esquema de engenharia financeira internacional. Após essa incorporação, formou-se um novo conglomerado empresarial - CVRD Inco, cujo valor de mercado em 2008 foi estimado em 196 bilhões de dólares pela consultoria Economática, perdendo no Brasil apenas para a Petrobrás (287 bilhões) e se tornando a 12º maior empresa do mundo.

Não há como negar que a mudança das características societárias da Companhia Vale do Rio Doce foi passo fundamental para estabelecer uma estrutura de governança afinada com as exigências do mercado internacional, que possibilitou extraordinária expansão dos negócios e o acesso a meios gerenciais e mecanismos de financiamento que em muito contribuíram para este desempenho e o alcance dessa condição concorrencial privilegiada de hoje. De fato, pode-se verificar que a privatização levou a Vale a efetuar investimentos numa escala nunca antes atingida pela empresa, graças à eliminação da necessidade de partilhar recursos com o Orçamento da União, o que, naturalmente, se refletiu em elevação da competitividade da empresa no cenário internacional e permitiu a série de aquisições necessárias para o crescimento do conglomerado minerador a nível internacional.
A despeito das mudanças societárias terem sido favoráveis aos negócios da empresa, ainda persiste muita controvérsia sobre os ganhos do setor público com o processo. Nesse sentido, é preciso destacar que a União, apesar da perda do controle gerencial, ainda permanece um importante acionista da Companhia. Com efeito, o Conselho de Administração da Vale é controlado pela Valepar S.A, que detém 53,3% do capital votante da empresa (33,6% do capital total). Por sua vez a constituição acionária da Valepar é a seguinte: Litel/Litela (fundos de investimentos administrados pela Previ) com 58,1% das ações, Bradespar com 17,4%, Mitsui com 15,0%, BNDESpar com 9,5%, Elétron (Opportunity) com 0,02%.

Se forem consideradas as ações da Previ (cuja diretoria é indicada pela União) e do BNDES como de influência direta do governo federal, este gerencia, por posse ou indicação, cerca de 41% do capital votante (incluindo participações externas à Valepar). Incluindo-se, ainda, a participação do Bradesco e dos investidores brasileiros, cerca de 65% do capital votante da empresa se encontram no País.

Nesse sentido, não só a influência da União nos destinos da empresa é ainda muito grande, como sua participação nos lucros da empresa é muito significativa, especialmente se for avaliado que, após a privatização, e em consequência do substancial aumento dos preços do minério de ferro, a Vale fez seu lucro anual subir de cerca de 500 milhões de dólares em 1996 para aproximadamente 12 bilhões de dólares em 2006.

O número de empregos gerados pela companhia também aumentou desde a privatização - em 1996, eram 13 mil e, em 2006, já superavam mais de 41 mil. Ademais, a União, além de ser beneficiária desses resultados através do BNDES, de fundos de previdência de suas estatais e de participação direta, ainda viu a arrecadação tributária com a empresa crescer substancialmente.
De fato, em 2005, a empresa pagou 2 bilhões de reais de impostos no Brasil, cerca de 800 milhões de dólares ao câmbio da época, valor superior em dólares ao próprio lucro da empresa antes da privatização.
Assim, é de difícil sustentação econômica o argumento de que houve perdas para a União. Houve ganhos patrimoniais, dado o extraordinário crescimento do valor da empresa; houve ganhos arrecadatórios significativos, além de ganhos econômicos indiretos com a geração de empregos e com o crescimento expressivo das exportações. A rigor, a União desfez-se do controle da empresa, em favor de uma estrutura de governança mais ágil e moderna, adaptando a empresa à forte concorrência internacional, mantendo expressiva participação tanto nos ganhos econômicos da empresa, como na sua própria administração.

E tal processo foi, inegavelmente, bem-sucedido. Diante dos fatos, consideramos que a proposta de submeter a reversão de um processo econômico desta natureza e desta monta é desprovido de sentido econômico e pode trazer sérios prejuízos à própria empresa e a seus acionistas, entre os quais se inclui, como exposto, o próprio interesse da União.

Pelas razões expostas, votamos pela rejeição do Projeto de Decreto Legislativo nº 374, de 2007.

Deputado JOSÉ GUIMARÃES
Relator

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DINIZ FILHO, L. L. Por uma crítica da geografia crítica. Ponta Grossa: Editora da UEPG, 2013.

GIAMBIAGI, F. Brasil, raízes do atraso: paternalismo x produtividade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.

KANDIR, A. O caminho do desenvolvimento: do Brasil hiperinflacionário ao Brasil competitivo e solidário. São Paulo: Editora Atlas, 1998.

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