domingo, 19 de janeiro de 2014

"Rolezinhos" provam sociologicamente que os shoppings são inclusivos, algo que a geografia também demonstra

É possível distinguir três fases dentro da trajetória de expansão dos shopping centers, no Brasil: a primeira, que vai de 1966 a 1970, é uma fase de instalação e experiência; a segunda é aquela em que ocorre a consolidação desse tipo de estabelecimento no país (embora seu número tenha continuado pouco expressivo) e se estende de 1971 a 1979; a última fase é a da expansão com desconcentração espacial do número de shopping centers, a qual começa em 1980 e prossegue nas décadas seguintes (Gil, 2003; Araújo; Bessa; Diniz Filho, 1992, p. 135). Fenômeno semelhante ocorre com os supermercados brasileiros, cuja implantação se dá nos anos 1950, mas que ainda se distribuíam de forma muito concentrada até meados dos anos 1970, difundindo-se espacialmente nas décadas seguintes (Diniz Filho, 1995).


Vê-se aí um padrão locacional em que supermercados e shopping se instalam primeiramente nas áreas frequentadas pela população de mais alta renda das regiões metropolitanas, implantando-se depois em áreas periféricas e municípios menores da metrópole. Por exemplo, a última grande área do município de São Paulo a receber shoppings foi a Zona Leste, que concentra o maior contingente de baixa renda. Fora das metrópoles, especialmente em regiões com rede urbana muito densa, como no interior de São Paulo, é comum a instalação de shoppings às margens das rodovias que ligam centros urbanos de porte médio às cidades vizinhas, de modo a atrair uma clientela regional, num raio que vai de algumas dezenas até duas centenas de quilômetros (Diniz Filho, 1995).

Esse padrão mostra que a dinâmica do comércio varejista, especialmente no caso dos grandes grupos econômicos, é inclusiva, pois busca alcançar a população de todas as faixas de renda e em todas as cidades. Os shoppings, em particular, são um dos mais poderosos vetores de generalização das formas de consumo, lazer e sociabilidade típicas de ambientes urbanos modernos, pois permitem induzir esse movimento de forma autônoma em relação à estrutura de comércio e serviços preexistente nos locais onde se instalam e ainda exercem influência numa escala intermunicipal (Diniz Filho, 1995).

Mas isso não quer dizer que os shoppings "impõem" padrões de consumo e de sociabilidade onde são construídos. Como a função desempenhada pelo varejo dentro da cadeia de valor adicionado é distribuir bens de consumo final, tal função torna esse setor particularmente sensível às transformações da sociedade urbana, em seus aspectos demográficos, econômicos e sócio-culturais. A experiência inicial do Shopping Center Mappin ABC - o primeiro de Santo André (SP) -, é muito ilustrativa disso. Projetada inicialmente para atender a uma população com renda elevada, e supostamente ávida por bens de consumo sofisticados, essa unidade precisou passar por uma reestruturação do seu mix de produtos, tendo havido até uma substituição de parte de suas lojas de grife por outras de perfil mais popular. Foi uma adaptação à cultura local, visto que boa parte da clientela visada pelo shopping era formada por trabalhadores da indústria que, embora com bons salários, mantinham hábitos de consumo provincianos (Cano et. al., 1991).

Os "rolezinhos"

Se a geografia dos shoppings espelha a natureza inclusiva do varejo, no sentido de universalizar o acesso a bens e serviços e formas modernas de sociabilidade, nem por isso a esquerda intelectual deixa de caracterizar esses estabelecimentos como expressão material e simbólica das supostas "perversidades" do capitalismo. E como o fracasso da teoria da centralidade operária obriga as viúvas da revolução a procurar luta de classes até na indisciplina escolar (literalmente falando), o resultado é que os "rolezinhos" vêm sendo interpretados por intelectuais de esquerda, a exemplo de Maria Rita Kehl, como uma forma de protesto, ainda que "inconsciente", dos jovens da periferia contra a "exclusão". Por fim, militantes de partidos como PT e de "movimentos sociais" como o MTST se apressaram a convocar protestos em shoppings e a batizá-los oportunisticamente como "rolezinhos" ou "rolezões" para fingir que suas reivindicações e palavras de ordem repercutem anseios da população pobre, e não apenas os interesses mesquinhos e visões de mundo distorcidas das organizações a que eles servem (ver aqui e aqui).

Ora, o simples fato de os distúrbios provocados pelos "rolezinhos" terem acontecido em shoppings de áreas mais periféricas de São Paulo já é uma prova cabal de que esses episódios nada têm a ver com "exclusão" ou com protesto, seja consciente ou inconsciente. Mas, se isso já não fosse evidência bastante, entrevistas realizadas recentemente com garotos que convocam e participam de "rolezinhos" provam esse fato sociologicamente e antropologicamente. É o que se pode ler na excelente matéria Rolezinhos: "eu não quero ir no seu shopping". Reproduzo abaixo alguns parágrafos bastante esclarecedores: 
[Os rolezinhos] continuam significando encontros-em-shoppings-marcados-pela internet, aos quais continuam comparecendo centenas e até milhares de adolescentes — a diferença é que esses adolescentes agora deram para correr em bandos pelos corredores, berrando refrões de funk ostentação, assustando lojistas, frequentadores e, ocasionalmente, cometendo furtos. De tudo o que se falou na semana passada sobre os rolezinhos, o maior equívoco diz respeito à crença de que eles foram inventados por pobres jovens revoltados por sua exclusão da sociedade de consumo. Para começar, famosinhos e fãs de famosinhos — os participantes originais dos rolezinhos — são, para usar o termo tão em voga, a elite da periferia. O único problema que têm em relação ao consumo é não o praticarem tanto quanto gostariam. Conectados e obcecados por marcas e acessórios de grife, têm o hábito de gastar com eles boa parte do salário (o próprio ou o dos pais).
Evandro [Farias de Almeida], por exemplo, gosta de comprar camisetas Abercrombie & Fitch e John John. O boné laranja que usava na última quinta-feira é o preferido entre os sete que possui — das marcas Puma, Mizuno e Nike. Ele compra as peças em outlets, que vendem coleções passadas e têm preços mais em conta. Mas poderia adquiri-las também em shoppings luxuosos como o JK Iguatemi e o Cidade Jardim. Evandro, no entanto, nunca pôs os pés nesses lugares — nem pretende fazê-lo. Essa afirmação coincide com a de praticamente todos os adolescentes da periferia paulistana entrevistados por VEJA na semana passada. E contraria o que foi amplamente disseminado por neoespecialistas em rolezinho: os adolescentes da periferia, conscientizados do fosso de impossibilidades que os separa dos seus equivalentes mais ricos, estariam prontos a promover invasões nos shoppings chiques — manifestações simbólicas contra os templos de consumo dos quais estariam apartados. Sobre essa possibilidade, diz Evandro: "Por que eu iria ficar duas horas dentro de um ônibus para fazer compras num lugar em que tudo é mais caro e ninguém me conhece?". [...] Olhados como são, os adolescentes dos rolezinhos decepcionam os que tentam ajustá-los aos seus moldes ideológicos. Suas bandeiras são os bonés de marca, seu interesse é se divertir e, se querem manifestar alguma coisa com as badernas nos shoppings, é apenas o pior do comportamento adolescente: irritante, egoísta, inconsequente e que inclui, obrigatoriamente, o desafio a algum tipo de autoridade.
P.S. Tudo isso se ajusta com perfeição ao episódio "Luta de Classes", da série de animação South Park. Eu recomendo!

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ARAÚJO, M. F. I.; BESSA, V. C.; DINIZ FILHO, L. L. O terciário metropolitano. In: CANO, W. (coord.). Cenários da urbanização paulista. A Região Administrativa da Grande São Paulo. São Paulo, Seade, 1992 (Coleção São Paulo no Limiar do Século XXI, v. 6).

CANO, W. et al. Economia regional: diagnósticos e cenários. Santo André, Convênio Fecamp/PMSA, 1991.

DINIZ FILHO, L. L. Modernização e dinâmica regional do comércio paulista (1980-1993). In: SEADE. Estratégias recentes no terciário paulista. 1. ed. São Paulo, Seade, 1995 (Coleção Análises e Ensaios, v. 1).

GIL, A. H. C. F. Shopping Centers em Curitiba: produção de novos espaços de consumo. Dissertação de Mestrado, Departamento de Geografia da UFPR, 2003.

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