Uma vez que a geografia crítica se tornou hegemônica, ninguém mais quer se assumir como um geógrafo crítico. Isso soa paradoxal, mas faz todo sentido. Se as teses fundamentais da geocrítica são aceitas por todos como verdades evidentes por si mesmas, que originalidade ou sofisticação pode haver no pensamento de um autor que se diz crítico ou radical? Por isso, é raro encontrar, além de uma Ana Fani Alessandri Carlos, quem continue a agitar a bandeira da geocrítica hoje em dia.
Assim, falar em hegemonia da geocrítica significa dizer que mesmo autores que nunca se propuseram a desenvolver essa perspectiva reproduzem seus pressupostos essenciais. É o caso de Rogério Haesbaert. Ele trabalha quase exclusivamente com teóricos radicais, que incluem, além de Marx e Engels, uma gama de marxistas, pós-modernistas e ecléticos, tais como Milton Santos, David Harvey, Marcelo Lopes de Souza, Carlos Walter Porto Gonçalves, José de Souza Martins, Gilles Deleuze, Félix Gattari, Michel Foucault, Giorgio Agamben e Boaventura de Souza Santos (Haesbaert, 2006; 2004).
Não surpreende, pois, que ele reproduza um dos pressupostos fundamentais da geocrítica, qual seja, a tese de que a lógica do capitalismo tem responsabilidade direta nos problemas econômicos e socioespaciais (Diniz Filho, 2003). Vejamos:
Se não há exclusão social, como defendem muitos autores, pois ninguém está completamente destituído de vínculos sociais, e se também não há exclusão territorial ou desterritorialização em sentido absoluto, pois ninguém pode subsistir sem território, existem, entretanto, formas crescentes de precarização social que implicam muitas vezes processos de segregação, de separação/”apartheid” – ou, como preferimos, de reclusão territorial, uma reclusão que, como todo processo de des-territorialização (sempre dialetizada), dentro da lógica capitalista dominante, envolve, muito mais do que o controle territorial e a comodidade social de uma minoria, a falta de controle e a precarização socioespacial da maioria (Haesbaert, 2004, p. 36 – itálico no original).
É incrível! Os indicadores sociais produzidos pelo PNUD, para citar apenas um exemplo, dão conta de que a renda per capita, a esperança de vida e a escolaridade estão se elevando praticamente no mundo todo. Basta ver as séries históricas do índice de desenvolvimento humano. E a pobreza dos países em desenvolvimento? Está em queda, conforme expliquei em outro post. No entanto, Haesbaert afirma que a “lógica capitalista dominante” se traduz em benefícios sociais e territoriais para uma minoria e, sobretudo, em precarização para a maioria!
E, apesar de fazer afirmações como essas, Haesbaert não concorda com a avaliação de que seus trabalhos são exemplos de geografia crítica, conforme eu já tive oportunidade de verificar. Durante a sessão de perguntas que se seguiu à conferência O mito da desterritorialização (Haesbaert, 2009), comentei que Haesbaert trabalha com autores que podem ser classificados como pós-modernos e que suas análises se aproximam da geografia crítica, preâmbulo que serviu para que eu indagasse se ele classificaria sua obra como pós-moderna e/ou como geocrítica, ou ainda se ele avalia que seus trabalhos não se enquadram em classificações desse gênero.
Sua resposta foi que ele não se preocupa em classificar o próprio trabalho e que sempre teve a intenção, como os acadêmicos geralmente têm, de construir um ponto de vista próprio. Como exemplo disso, afirmou que sua dissertação de mestrado, que versa sobre identidade regional na Campanha Gaúcha, trabalhava bastante com referenciais marxistas, mas não pode ser caracterizada como uma aplicação do materialismo histórico dialético à geografia porque também se baseou na visão de Cornelius Castoriadis sobre a dialética e sobre a concepção de totalidade aberta.
Não fiz nenhum comentário à resposta porque não se tratava de um debate, mas é fácil perceber que essa combinação de marxismo com o trabalho de Castoriadis está perfeitamente de acordo com o tipo de ecletismo próprio da geocrítica, o qual consiste numa combinação de autores que, embora de tendências teóricas e metodológicas heterogêneas, convergem quanto ao objetivo de empreender uma crítica radical ao capitalismo e, na maior parte das vezes, também no esforço de refletir sobre as possibilidades de superação dessa sociedade. É bem o caso de Castoriadis, fundador do grupo Socialismo ou barbárie...
E depois há quem diga que a geocrítica já morreu!
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DINIZ FILHO, L. L. A geografia crítica brasileira: reflexões sobre um debate recente. Geografia, Rio Claro, v. 28, n. 3, p. 307-321, 2003.
HAESBAERT, R. O Mito da Desterritorialização. Conferência proferida durante o I Simpósio Nacional de Geografia Política, Território e Poder. Curitiba: UniCuritiba, 02 jun. 2009.
HAESBAERT, R. Ordenamento territorial. Boletim Goiano de Geografia, Goiânia, v. 26, n. 1, 117-124, jan./jun. 2006.
HAESBAERT, R. Precarização, reclusão e “exclusão” territorial. Terra Livre, São Paulo, v. 2, n. 23, p.35-51, 2004.
HAESBAERT, R. Precarização, reclusão e “exclusão” territorial. Terra Livre, São Paulo, v. 2, n. 23, p.35-51, 2004.
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