sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Delfim Netto não virou companheiro só por conveniência

É preciso mesmo ter estômago para ler o artigo que Delfim Netto, antigo czar da economia durante a ditadura militar, publicou na Folha para defender Lula das acusações de Marcos Valério. Mas não vou tratar das incoerências e até hipocrisias desse "signatário do AI-5 e último dignitário da ditadura" quando ele se põe a falar em nome da democracia para ameaçar a imprensa, pois Reinaldo Azevedo já lhe deu um pau muito bem dado (aqui). Vou apenas acrescentar que a afinidade de Delfim Netto com o PT não se deve apenas ao ódio que ambos devotam à democracia, em nome da qual falam, mas também ao fato de que a atual política econômica é o horizonte possível do estatismo que muitos petistas um dia quiseram socialista ou nacional-popular.


Sim, houve tempo em que os economistas e políticos do PT malhavam Delfim sem piedade. Afinal, foi ele quem ficou célebre por dizer que "primeiro o bolo tem que crescer para depois dividir" (ou ser dividido, que é mais certo). E lá vinha a esquerda vociferar que ele era um cínico, que o modelo econômico da ditadura era "excludente", e que o país tinha que combinar crescimento econômico com distribuição de renda. Quando foi que Delfim Netto virou um companheiro, a ponto de ter sido um dos integrantes da banca de defesa de doutorado de Aloizio Mercadante? Foi na época do Plano Real. Do mesmo modo que os economistas do PT, como Conceição Tavares e Belluzzo, Delfim Netto (2002) se dedicou a fazer as críticas mais severas possíveis às reformas dos anos 1990 e seus efeitos sobre a estrutura produtiva. E ainda acompanhou os petistas no erro gigantesco de vaticinar o fracasso do Plano Real. Isso parece não ter feito muito bem para a reputação dele entre os economistas que estão fora do PT, como se viu quando ele abandonou o malufismo decadente para aderir ao PMDB. Mas, para virar companheiro, isso não teve importância nenhuma; afinal, companheiro só precisa fazer coro, não acertar.

Assim, deve-se assinalar que as críticas de Delfim Netto ao Real não foram feitas unicamente em função de uma estratégia de aproximação com o PT visando ganhar espaço político, pois eram na maior parte coerentes e sinceras com o seu modo de pensar. Como já disse Gustavo Franco, e com razão, ele é o "decano dos heterodoxos" do pensamento econômico brasileiro. 

Não vou repetir as características da heterodoxia, da qual tratei em outro post (ver aqui). Noto apenas que as diferenças entre Delfim e a turma da esquerda só pareciam ser intransponíveis quando o Brasil vivia ainda sob o paradigma que se convencionou chamar de "nacional-desenvolvimentismo" e ao longo da crise desse modelo. Enquanto a ditadura queria modernização da estrutura produtiva e expansão econômica acelerada, mesmo que acompanhadas de maior desigualdade de renda, nossa esquerda propunha privilegiar a ação distributiva do Estado ainda que isso implicasse alguma redução no ritmo de crescimento. E isso era verdade tanto para os marxistas da velha guarda da Unicamp quanto para cepalinos, feito Celso Furtado, e especialistas em economia regional. 

Nos anos 1980, à medida em que ia ficando claro que o nacional-desenvolvimentismo precisava ser substituído ou profundamente reformado, outras divergências importantes se manifestaram entre o deputado Delfim Netto e seus atuais companheiros. Uma delas se deu com a Constituição de 1988, posto que ele votou contra as mudanças de viés fortemente distributivistas trazidas pela nova Carta. Outra divergência digna de nota apareceu na discussão da reforma do Estado. É que, para a esquerda marxista ou estruturalista, as estatais que operavam nos setores de infra-estrutura e de bens de capital deveriam permanecer estatais, justificando-se privatizações apenas em setores "não estratégicos". Por sua vez, Delfim Netto avisava na TV que o Brasil tinha de executar uma "privatização selvagem", isto é, rápida e bastante ampla. Todavia, que ninguém se iluda em pensar que tal proposta traía um viés neoliberal no pensamento de Delfim: para ele, as privatizações deveriam ser conduzidas dentro da lógica de "escolha dos vencedores" por parte do Estado, não por meio de leilões abertos a qualquer empresa interessada. Como assinalou certa vez Sardenberg, essa visão das privatizações estava bem de acordo com o padrão das relações entre Estado e setor privado no tempo da ditadura, quando Delfim era ministro.

Nesse sentido, essas divergências que se manifestaram nos anos 1970 e 1980 acabaram deixando meio na sombra o que havia de comum entre os desenvolvimentistas autoritários à la Delfim e a turma da esquerda: acontece que as duas vertentes viam o Estado como o agente central dos processos de reestruturação produtiva e de crescimento econômico, o que justificaria uma política macroeconômica em boa medida tolerante com déficit público, câmbio desvalorizado e inflação. Exatamente como ao tempo dos militares, quando Delfim Netto foi ministro mais de uma vez.

Ora, a estabilidade econômica assegurada pelo Real e pelas mudanças empreendidas na política econômica em janeiro de 1999 só foi possível na medida em que o governo de então rejeitou a heterodoxia preconizada por gente como Delfim Netto, Celso Furtado e Conceição Tavares. Depois da chegada do PT ao governo, economistas do PT e Delfim Netto restringiram suas críticas ao continuísmo por saberem que, apesar dos pesares, o PT iria manter a ortodoxia econômica dentro dos limites mínimos necessários para que a estabilidade conquistada nos anos 1990 não fosse perdida. O resultado é esta Era da Mediocridade, como diz Augusto Nunes. Mas, para quem não é capaz de mudar de ideia, e nem aceita a democracia, é melhor ficar ao lado do estatismo possível.

- - - - - - - - - - -

DELFIM NETTO, A. A economia política do desenvolvimento. In: BIELSCHOWSKY, R.; MUSSI, C. (org.). Políticas para a retomada do crescimento: reflexões de economistas brasileiros. Brasília: Ipea; Cepal, 2002.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário foi enviado e está aguardando moderação.