quarta-feira, 24 de outubro de 2012

"O Leopardo" e as ironias da história

Um livro que fazia muito sucesso entre acadêmicos e ativistas políticos e estudantis da USP na segunda metade dos anos 1980 era O leopardo, de Tomasi di Lampedusa (Círculo do Livro, s.d.). Trata-se de um romance biográfico que narra a vida do Príncipe de Salina, avô do autor, desde a maturidade até a morte. Como estávamos na Nova República, os uspianos adoravam citar uma frase desse livro, atribuída ao Príncipe, que era mais ou menos assim: "é preciso que as coisas mudem para continuarem como estão". 

A citação visava mostrar que a mudança produzida com o fim da ditadura era mais ilusória do que de fato, pois tratava-se de uma nova jogada das "elites" para continuar no poder. E, numa perspectiva histórica mais ampla, essa frase era repetida com o fim de ilustrar o conceito de "modernização conservadora", usado pela esquerda intelectual e política para explicar a resistência de estruturas socioeconômicas e políticas arcaicas no Brasil, bem como a longevidade de certos grupos políticos no poder.

Hummm... sigamos em frente. No livro, o sobrinho do Príncipe, chamado Tancredi, casou-se com a filha de um comerciante rico. Tipo de casamento clichê no final do século XIX, pois uniu um nobre em decadência econômica, mas com sobrenome respeitado, à filha de um burguês muito rico, porém sem status social. Com o dinheiro obtido, o sobrinho do Príncipe fez investimentos de sucesso no setor de mineração, transformando-se num burguês. No campo político, ele participou da revolução liderada por Garibaldi, a qual teve importante papel na eliminação das velhas estruturas políticas herdadas dos tempos feudais. As coisas mudaram para continuar tudo como antes, certo?

Errado! Quando eu li esse livro, descobri que as pessoas o citavam o tempo todo sem terem lido. O autor mostra que o Príncipe de Salina era um senhor feudal por excelência, pois sua riqueza provinha do arrendamento de terras, o qual era pago em produto mesmo, como era típico, sobretudo, no início do feudalismo. Todavia, ele nunca exerceu nenhum grande poder político na Sicília ou mesmo em escala local. Não se preocupava em indicar pessoas para ocupar cargos públicos, e o máximo que fazia era dar aconselhamento a autoridades que o procuravam. Aliás, ele se interessava mais por astronomia do que por política. E, embora tenha levado sempre uma vida luxuosa, foi à custa da dilapidação do seu patrimônio. Segundo a obra, sempre que o Príncipe precisava de uma grande quantia em dinheiro, vendia parte de suas terras e pronto. Foi ficando menos rico ao longo do tempo e nunca se preocupou muito por conta disso.

Finalmente, e mais importante, quem dizia aquela frase que os uspianos adoravam citar não era o Príncipe de Salina, mas sim o seu sobrinho arrivista! Logo no início do livro, ele conta ao tio que vai participar do movimento revolucionário, e este o contesta dizendo que ele deveria ficar do lado do rei. Tancredi responde o seguinte: "Do lado do rei, com certeza, mas de que rei? [...] Se nós não estivermos lá, eles fazem uma república. Se quisermos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude" (p. 28).

Como se vê, de modo algum o livro afirma que a elite dominante se adapta aos novos tempos para deixar tudo como está. Ao contrário, o livro mostra que parte da elite desaparece mesmo, e aqueles que preservam seu poder político e econômico só o conseguem na medida em que se transformam. De fato, há uma diferença abissal entre um nobre que vive de consumir renda da terra e um empresário que investe dinheiro em mineração para fazer mais dinheiro! Tancredi transformou-se em burguês graças às suas iniciativas nos campos social, econômico e político, ao passo que as filhas do Príncipe, orgulhosas demais, acabaram virando solteironas amargas.

Ironias da história

Mas o meu objetivo principal com este texto não é mostrar que os acadêmicos e ativistas de esquerda, na tentativa de afetar argúcia, viviam citando equivocadamente uma obra que nunca leram. O que eu quero mesmo é falar da ironia que salta aos olhos quando relembro esses fatos à luz dos acontecimentos dos últimos 25 anos, dentro e fora da academia. 

Se a Nova República era uma tática de mudar as coisas para que continuassem como estavam, então a chegada do PT ao poder seria o começo de uma revolução socialista pacífica, ou ao menos de um novo modelo de desenvolvimento nacional-popular, certo? Ao menos era isso o que pensava a maior parte daqueles acadêmicos e militantes que se enganavam ao citar O lepardo. Mas, ora vejam, transformação estrutural com apoio de Sarney, Collor, Maluf e compra de votos de parlamentares, como se viu no mensalão? E não adianta disfarçar dizendo que é preciso usar o apoio da "direita" para levar adiante mudanças graduais que, no longo prazo, seriam profundas. A desculpa não cola pelo fato de que os governos do PT são continuístas com os de FHC em diversas áreas importantes, como nas políticas econômica e fundiária, assim também como nas privatizações e na reforma da previdência. E as diferenças em relação a esse governo são, na maior parte, aquelas que aproximam o PT dos velhos vícios da irresponsabilidade fiscal, loteamento da máquina pública, desperdício de recursos, fisiologismo, patrimonialismo, etc.

Ainda mais irônico, porém, é ver que, após a Queda do Muro de Berlim, nossos intelectuais críticos mudaram para deixar tudo como estava dentro da universidade! Foi isso o que eu mostrei no post Carlos Walter mudou para ficar a mesma coisa: devido à crise teórica e prática do marxismo, nossos acadêmicos começaram a rejeitar o rótulo de marxistas e misturaram suas velhas teses a ideias humanistas e pós-modernistas que servissem para lhes dar um verniz de modernidade sem terem de abrir mão de nada do que haviam escrito antes contra o capitalismo. Ou, conforme eu escrevi no texto Certa má herança marxista (Diniz Filho, 2002), a geocrítica tornou-se epistemologicamente mais eclética para continuar a mesma de sempre!

A musa da história é mais irônica do que as das artes literárias...

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DINIZ FILHO, L. L. Certa má herança marxista: elementos para repensar a geografia crítica. In: MENDONÇA, F. A.; KOSEL, S. (org.). Elementos de epistemologia da geografia contemporânea. 1. ed., Curitiba: Editora da UFPR, 2002.

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