quarta-feira, 20 de junho de 2012

Inventores da "pegada ecológica" seguem o rastro de Celso Furtado até nas bobagens

Conforme eu já comentei no post A China responde a Celso Furtado, esse economista afirmava, nos anos 1970, com base nas conclusões do estudo Os limites do crescimento, que era ecologicamente impossível levar à toda população do planeta o padrão de vida dos países ocidentais. A escassez de recursos e os impactos ambientais gerados nesse processo forçariam os países em subdesenvolvimento a optar entre um alto padrão de consumo, mas restrito a pequenas parcelas de suas populações, ou um padrão de vida digno para todos os seus habitantes, só que mais modesto do que o vigente nos países desenvolvidos.


Como se vê, a ideia é bem velha, mas há quem a divulgue como se fosse novidade só por vir acompanhada de uma metodologia para o cálculo da sustentabilidade. É o que se lê na entrevista que William Rees e Mathis Wackernagel concederam à Época. Eles inventaram a "pegada ecológica", metodologia que serve para estimar a quantidade de recursos naturais consumidos por uma população e compará-la à capacidade natural de reposição desses recursos. Seus diagnósticos são tão enfáticos sobre a conveniência de apoiar a melhoria das condições de vida na distribuição de renda quanto as teses de Furtado, mas frisam até mais do que ele a necessidade de restringir os níveis de consumo nos países desenvolvidos. 


Não vou entrar no mérito de discutir a utilidade da "pegada ecológica" para estimar a sustentabilidade de um país, cidade, empresa ou indivíduo, posto que não conheço a metodologia de cálculo. Mas sei que a ideia é velha e que esses autores dizem algumas bobagens tão grandes quanto Furtado dizia. Ao serem indagados sobre quais países do mundo teriam um nível de consumo compatível com a capacidade de reposição natural do planeta, William Rees respondeu:
Rees  – Não consigo pensar em nenhum deles que use seus recursos de forma completamente responsável. A maior parte dos países é baseada no consumo. Por isso, acho que Cuba é um bom exemplo. Eles estão muito próximos de consumir um planeta, e se todos vivessem assim estaríamos bem.
Época – Mas Cuba tem bastante pobreza...
Rees – Sim, eles têm desigualdades. Mas fizeram mais a respeito disso que muitos outros países. Eles têm saúde e educação públicas muito boas, melhor que nos Estados Unidos. Outro país seria a Tailândia, próxima de um planeta. Ou a Malásia. São países que poderiam ficar mais igualitários se desenvolvessem de forma sustentável sua economia.
Celso Furtado, no começo dos anos 1990, citava a China e a Coreia do Norte como exemplos de países que teriam conseguido oferecer boa qualidade de vida com homogeneidade social. Mas a história se encarregou de mostrar que isso era falso, conforme já comentei no post citado sobre esse autor. Quanto à Cuba, trata-se de uma estupidez sem tamanho dizer que esse país oferece boa qualidade de vida a seus cidadãos. Não só a pobreza é avassaladora como os sistemas de saúde e de educação são de péssima qualidade. Eu já citei neste blog uma reportagem da revista Piauí na qual fica demonstrado que, nas universidades cubanas, chega a faltar água para tomar banho, ao passo que os únicos hospitais de bom nível são os que atendem preferencialmente à alta burocracia do partido comunista (família Castro incluída, é óbvio). Já as pessoas comuns têm de se tratar em péssimos hospitais públicos ou pagar suborno para escapar dos muitos meses de espera na fila de atendimento dos hospitais usados pela elite burocrática! Melhor do que nos EUA!? Pior do que no Brasil, isso sim!

E isso para não mencionar que, conforme conta a jornalista cubana Yoani Sánchez, os familiares dos doentes internados nos hospitais comuns têm de fornecer eles mesmos os lençóis e toalhas utilizados pelo parente, além de desinfetantes e inseticidas para uso nas instalações hospitalares. Isso nem sequer pode ser chamado de saúde pública! E ela ainda acrescenta que, em matéria de comida, há escassez em Cuba, sim.

Sobre a Tailândia e a Malásia, cabe notar que esses países possuem renda per capita de 7.662 e 13.021 dólares por paridade do poder de compra, respectivamente, e expectativa de vida de 74 anos(*). Essa longevidade é alguns anos inferior a de países como EUA, Japão, Austrália e Suécia, todos eles com renda per capita de duas a três vezes superior àquelas dos países citados por Rees. Isso significa que, mesmo supondo-se ser possível elevar a expectativa de vida dos países em desenvolvimento a níveis japoneses só com distribuição de renda, o padrão de consumo do Primeiro Mundo teria de ser fortemente rebaixado para que os países desenvolvidos fossem sustentáveis segundo a metodologia de cálculo da "pegada ecológica". Significa também que os nigerianos, moçambicanos e haitianos devem saber que o máximo que podem almejar em termos de melhoria de poder de consumo é o limite dado pela renda per capita da Tailândia ou da Malásia, e que isso pode valer também para a longevidade...

É óbvio que eu não sou contra avaliar a capacidade de reposição natural dos recursos utilizados para a produção de bens e serviços, e também não sou contra refletir sobre a possível necessidade de limitar o uso de recursos naturais do planeta. Apenas chamo a atenção para o fato de que o discurso segundo o qual os problemas sociais e ambientais se resolvem principalmente com distribuição de renda é muito mais ideológico do que apoiado em fatos. O socialismo é um desastre fragoroso e o crescimento econômico tem sido o principal fator de redução da pobreza no mundo em desenvolvimento, especialmente considerando-se um horizonte de longo prazo, como mostram estudos do Banco Mundial.

A esse respeito, chega a ser engraçado lembrar que a atual crise europeia teve origem precisamente na busca desenfreada de distribuir renda para reduzir as desigualdades econômicas entre países na Zona do Euro! Contudo, Rees acha "irônico e até mesmo tolo que países estejam preocupados com deficit fiscal, que afeta principalmente pessoas ricas e em aspectos materiais, mas ignorem o deficit natural, que prejudicará a todos" (Rees; Wackernagel, 2012, p. 98). 

Francamente! Foi essa mentalidade distributivista defendida por Rees que levou à quebradeira de governos europeus, com efeitos de desaceleração do crescimento econômico mundial que não só afetam a todos como principalmente aos mais pobres! Menosprezar a importância do crescimento econômico e do equilíbrio fiscal em nome da sustentabilidade só faria sentido se as políticas de distribuição de renda trouxessem mesmo todos os benefícios sociais e ambientais esperados desde o tempo de Celso Furtado, mas, até hoje, tais expectativas nunca se confirmaram. Embora os inventores da "pegada ecológica" insistam muito na ideia de que não podemos contar só com as expectativas de avanço tecnológico para combinar melhora das condições de vida com sustentabilidade ambiental, a verdade é que o fracasso econômico e social das políticas fortemente distributivistas indica que os caminhos que eles sugerem não são melhores.

Em vista de tudo isso, fico me perguntando em qual planeta esse melancia chamado William Rees vive. Na Terra é que não é!

- - - - - - - - - -

REES, W.; WACKERNAGEL. "Os países ricos não precisam consumir tanto". Época, n. 735, 18 jun. 2012, p. 98-100. Entrevista a Margarida Telles.

(*) Dados do site Gapminder World para 2008.

Um comentário:

  1. Ao invés de "pegada ecológica", os seus autores fariam por bem chamá-la de piada ecológica...

    ResponderExcluir

Seu comentário foi enviado e está aguardando moderação.