quinta-feira, 8 de setembro de 2011

"Marx devia ser brasileiro"

Faz pouco tempo, eu estava conversando com uma estudante alemã que assistia às minhas aulas de Geografia do Brasil e ela fez um comentário muito interessante e pertinente. Ela disse que, nas universidades da Alemanha, Marx é estudado como um clássico das ciências sociais, um clássico entre outros. Todavia, aqui no Brasil, nas várias disciplinas que ela cursou em departamentos diferentes, praticamente só dava MARX (a exceção era justamente a minha disciplina). Daí o comentário irônico que ela fez: "eu acho que Marx devia ser brasileiro".

Comentei com ela que, embora eu não seja marxista e já tenha feito muitas refutações pesadas à geografia crítica em meus trabalhos, entendo que os cursos de ciências sociais devem apresentar uma introdução ao pensamento de Marx do mesmo modo como se ensinam outros autores que foram influentes na academia ao longo da história das ciências sociais. É o que procuro fazer na disciplina Geografia Econômica, em que apresento uma breve introdução à história do pensamento econômico e situo a contribuição das suas principais escolas à geografia econômica.

De qualquer forma, o comentário dessa aluna é uma evidência clara de que a visão do filósofo José Paulo Netto é predominante nas ciências sociais brasileiras. Esse autor é um daqueles marxistas que não se conformam com a visão de que Marx seja apenas um dos clássicos do pensamento filosófico e social, pois associa essa concepção a "traços de novos agnosticismo e irracionalismo" (sic!) no pensamento social, além de defender a superioridade explicativa do método e da teoria marxistas (Netto, 2001, p. 35-40).

Não admira que esse autor defenda um projeto socialista cuja construção passa necessariamente pelo uso da violência e se completa com uma socialização dos meios de produção que, de alguma maneira que ele não explica qual seja, conseguiria combinar o planejamento econômico centralizado com a eliminação de excessos burocráticos (Netto, 2001, p. 72).

Mas será que os muitos acadêmicos brasileiros que pintam o marxismo para os estudantes como verdade científica incontestável encaram o projeto socialista desse mesmo jeito? Alguns, com toda certeza, mas, ao menos no que diz respeito à área que eu conheço melhor, que é a geografia, a visão predominante não é essa de José Paulo Netto. A maior parte dos autores mostra aos alunos que a teoria marxista é uma verdade indubitável no que diz respeito à crítica do capitalismo, mas não quanto à formulação de um projeto socialista para o século XXI. À semelhança de Boaventura de Souza Santos, essa maioria prefere misturar dogmas antidemocráticos e antiliberais do marxismo com uma crítica "pós-moderna" à "ciência cartesiana" e ao "positivismo" para chegar a um projeto socialista alternativo. Todavia, o tal projeto socialista a que estes últimos conseguem chegar não se livra do teor autoritário do velho socialismo real e nem sequer pode ser chamado de projeto, já que não tem clareza nenhuma (Diniz Filho, 2009).

Mas, por um caminho ou por outro, o fato é que a doutrinação teórica e ideológica praticada no sistema de ensino, em todos os níveis, é um poderoso fator explicativo da enorme influência que o marxismo conserva nos meios intelectuais brasileiros, muito embora mergulhado há décadas em profunda crise teórica e política. Por conta dessa doutrinação, Marx já foi naturalizado brasileiro.

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NETTO, J. P. Crise do socialismo e ofensiva neoliberal. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2001 (Coleção Questões da Nossa Época, v. 20).

OBS.: Publicado originalmente em 27 de junho de 2011 no site Geografia em Debate

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